sábado, 31 de julho de 2010

VI - INTRA-HISTÓRICOS(2)




...ASSIM É PEDRO ANTONIO: sempre imerso em sua rotina. Cedo já está catando papelões deixados à porta dos trapiches do cais de Santa Rita. Pega um trapo velho, sob as marquises das lojas da Rua da Praia. Ou então, recolhe sobras de frutas e verduras, na porta principal do Mercado de São José. Aqui e acolá, perambulando, sem pressa e sem preguiça, cumpre o seu labor com a disciplina instintiva de uma formiga, de uma abelha operária. Em casa a prole espera o de comer. Imperiosa necessidade o conduz de lixeira em lixeira: a fome.

Pedro Antonio não lê, nem escreve. No entanto, conhece o nome de todas as ruas da cidade. Conhece-as pelos prédios, pela cara gorda e cínica dos gerentes de lojas, pelos rostos sofridos dos vendedores de sapatos. Na Rua do Rangel, ferragens e rações. Na Direita, aviamentos. Na das Águas Verdes, quinquilharias, miudezas e a famosa homeopatia do Dr. Sabino Pinho. Pode até ser um analfabeto de pai e mãe, como ele mesmo costuma dizer, mas tem fama de excelente conhecedor da língua das estrelas. Já explico: antes da velhice e da doença, foi mestre de barco da Colônia Z-1. Sabia ler o firmamento como poucos, e nunca se perdeu no mar. Nem no mar, nem na terra. Sua vida tinha prumo. Seu norte era o trabalho. Sua bússola, a necessidade. Seu estímulo, a fome. Não, a sua fome. Vivia para matar a fome dos netos. Largou tudo, depois da morte dos três filhos: os barcos, o mar alto, as estrelas. Deixou até de beber sua cachacinha, cujos excessos lhe deram muito dissabor. Precisava terminar de criar os netinhos. E entrou de cabeça nesse cotidiano de catador de lixo, rotina invariável, ao sol e à chuva, de todos os dias da semana.

Os filhos de Seu Pedro, dizia o povo, morreram por não ter a sua têmpera para suportar as dores e a miséria.
Um deles resolveu se calar. Enfiou-se no barraco e amofinou-se. Nada dizia. Não exprimia um gemido. Nem mesmo seu semblante se alterava por nada. Nada em seu ser que demonstrasse alguma comunicação com o mundo. Dizem que viu algo no alto mar, numa viagem que fez com o pai. Nessas navegações com pequenos barcos pesqueiros, que duram dez, às vezes, quinze dias, os pescadores exageram no consumo da cachaça e da maconha. Esse era o filho mais velho de Pedro Antonio, de nome Jasão, andava aí pelos trinta anos. Numa dessas viagens, ingeriu as duas drogas: fumou a canabis e bebeu cachaça, em grande quantidade. Começou a ter alucinações. Dizia ter visto uma Sereia, ou a Mãe d’água, que, nua e sorridente, oferecia-lhe os braços. Louco, tentou atirar-se ao mar. Impediram-no, os outros pescadores. Passou o resto da viagem amarrado com cordas grossas na cabine do barco, febril e delirante. Ao regressar, trancou-se no barraco e nunca mais disse uma palavra. Encontraram-no morto, os olhos esbugalhados, como se tivesse visto uma assombração. Dizem, até hoje, que Iemanjá, a Rainha do mar, levou o seu espírito para o fundo das águas. Os mais entendidos diziam que aquilo era apenas o resultado do delirius tremens. Os jocosos de plantão, e os pinguços na porta das bodegas, refutavam, dizendo que ele apenas tinha visto o boitatá, entidade fantástica que persegue os alcoólatras. Jasão deixou uma jovem viúva, que sumiu no mundo, largando os três filhos do casal aos cuidados dos avós.

Jethro, o filho do meio, enfiou-se no álcool depois de uma desilusão amorosa. Diz o povo da maré que, não se sabe por qual Galega da Zona ele se apaixonou, que virou a cabeça do pobre rapaz, a tal ponto que ele deixou Dona Marina, sua mulher, e se foi atrás da rapariga. Corneado pela Galega, que não queria deixar a vida fácil, entristeceu-se. Não quis mais pescar. Não queria nem ouvir falar de mar ou pescaria. E todos sabem que isso aborrece Dona Iemanjá. Ela tem ciúme dos pescadores. Foi por isso que Jethro, sem trabalho em terra, começou a zanzar pela Ilha sem Deus, de barraca em barraca. Foi gostando da vadiagem e da cachaça, tanto e tanto, que já nem lembrava da tal paixão, que o havia trocado por outro. Enfiou-se de vez na aguardente, e poucos anos depois, acometido de complicações hepáticas e de uma fraqueza extrema, desnutrido que estava, entrou em coma alcoólico e morreu. Pedro Antonio quase morre também, de tristeza.

Mas, pelo que se conta, Josué, o filho mais novo do infeliz Pedro Antonio, teve um fim muitas vezes pior. Vivia pelas ruas, agarrado a uma garrafinha de cola. Quase não aparecia em casa. Meteu-se a roubar. Fez pequenos furtos e outras pequenas incursões pelo tráfico de drogas. Foi encontrado morto na maré, crivado de balas. Também deixou um filho recém-nascido, e sua mulher, ainda menor de idade, viciada e andarilha das ruas, que Pedro também se via na obrigação de alimentar.

Apesar de todas essas pequenas tragédias, Seu Pedro sai invariavelmente às quatro horas da manhã, ainda o mundo escuro, para seu ritual de catador de papéis. O povo pobre dos casebres se admirava: Se os filhos puxassem ao pai estariam todos vivos, ó xente! Não se sabe a quem puxaram, aqueles meninos. Não foi à mãe, Dona Maria do Ôio Azul, que também é uma batalhadora do marisco e do caranguejo. Ôxe, onde já se viu isso?




►VII


►alea índex

► XVIII (sugestão de nexo)