sábado, 31 de julho de 2010

V - RIZOPHORA MANGLE

OU DA LAMA AO CAIS
(uma, ainda genesíaca, apropriação)



“Toda esta vasta planície inundável formada de ilhas, penínsulas, alagados e paús (sic), fora, em tempos idos uma grande fossa, uma baía em semicírculo, cercada por uma cinta de colinas. Nela vindo a desaguar, através da muralha dessas colinas, dois grandes rios — o Capibaribe e o Beberibe — foram entulhando a fossa com materiais aluvionais; com a terra arrancada de outras áreas distantes e trazida na enxurrada de suas águas. Pouco a pouco, foram surgindo, dentro da baía marinha, pequenas coroas lodosas, formadas através da precipitação e deposição dos materiais trazidos pelos rios.
E foi sobre estes bancos de solo ainda mal consolidado, mistura incerta de água e terra, que se apressaram a proliferar os mangues – estranha vegetação capaz de viver dentro da água salgada, numa terra frouxa, constantemente alagada. Agarrando-se com unhas e dentes a este solo para sobreviver, através de um sistema de raízes que são como garras fincadas profundamente no lodo e amparando-se umas nas outras, para resistirem ao ímpeto das correntezas da maré e ao sopro forte dos ventos alíseos que arrepiam sua cabeleira verde, os mangues foram pouco a pouco entrelaçando suas raízes e seus braços numa amorosa promiscuidade, e foram, assim, consolidando a sua vida e a vida do solo frouxo das coroas de lodo, donde brotaram.
Com os depósitos aluvionais que se foram acumulando na trama do labirinto de raízes dos mangues e debaixo das suas copadas sombras verdes, foi progressivamente subindo o nível do solo, e alargando sua área sob a proteção desse engradado vegetal. Não há, pois, a menor dúvida, que toda esta terra que hoje flutua à flor das águas, na baía entulhada do Recife, foi criação dos mangues.
Os mangues vieram com os rios, e com os materiais por estes trazidos foram os mangues laboriosamente construindo seu próprio solo, batendo-se em luta constante contra o mar. Vieram como se fossem tropas de ocupação, e, ao contato com o mar, edificaram, silenciosa e progressivamente, esta imensa baixada aluvional, hoje cortada por inúmeros braços d’água dos rios e densamente povoada de homens e caranguejos, seus habitantes e adoradores.
Tendo os mangues realizado esta obra ciclópica, não admiro que, hoje, sejam eles divinizados pelos habitantes desta área, embora não saibam os homens explicar como o mangue realiza este milagre de criar terra como se fosse um deus. Mas eles vêem até hoje crescerem ante seus olhos as coroas lodosas e transformarem-se, pela força construtora dos mangues, em ilhas verdejantes, fervilhantes de vida. E vêem, assombrados, proliferarem em torno das ilhas maiores, outras pequeninas, como saídas durante a noite de seu ventre, em misterioso parto da terra que o mangue milagrosamente ajuda.”


..................................................................................................(Josué de Castro)




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