sábado, 31 de julho de 2010

II – RIO TEJIPIÓ

Ou primeira meditação sobre a impermanência das coisas

“Assim, o rio-vida, ou, o rio da vida é simultaneamente belo e fugidio
E impossível de agarrar ou deter, dado o seu permanente fluir.
É uma estrutura aberta, uma proposta aberta.”

...........................Ana Hatherly, poeta e ensaísta portuguesa





Perambulava, sem rumo,
por entre os coqueiros da Ilha das Cabras,
uma das três ilhotas do antigo arrabalde de André Luiz Pina,
quando me vi no fundo de um quintal arborizado.
Assentando-me sob um frondoso pé de fruta-pão,
testemunhei a passagem das horas lentas de um rio.
Assemelhava-se ao Rio Tejipió.
Não, esse, que passa entupido de lixo, apodrecido;
o rio que eu via, o que vejo, é o cristalino e fugaz rio da minha infância.
Abracei o transitório e franzino menino que havia em mim.
Ele não me esperava e não me reconheceu, mas, eu...
Ah, eu o reconheço sempre...

***

Tomei-lhe as mãos e descemos as ribanceiras.
Então nos fomos embrenhandos mata a dentro.
Cruzamos o vale do Sobe e Desce,
até depararmos com as margens daquele córrego-sombrio-entre-castanholas.
Era um dos irmãos menores,
fétido afluente do rio Tejipió,
escoadouro das águas insalubres do Sanatório do Sancho.
Mais abaixo, em uma ravina, passavam os trilhos da Rede Ferroviária Federal.
Eu vi a Maria Fumaça,
rumando pra Jaboatão,
ou o trem de Itabaiana,
fumegando e resfolegando, com estrepitosos piuís-tatatás.

***

Era ali perto que ficava a casa antiga de meus avós.
Aos sábados fazíamos uma caminhada vespertina.
Doze netos, mais um magote de adultos, curiosos por ver a nova invenção:
o aparelho de TV em preto e branco.
A suave lembrança de minha avó vem num cheiro de sopa quentinha,
nas tardes remotas daqueles sábados.
A de meu avô vem com livros e traz o sabor das balas Recheadas da Renda & Priori.
Antes do banho, um delicioso licor de jenipapo esquentava o sangue.


– Vó, minha sopa é com pão picado dentro, visse? E farinha!
– Farinha na sopa? Onde já se viu isso?


Depois do jantar, os doze netinhos sentarão na calçada da Rua 15 de Novembro,
e aguardarão, ansiosos, a passagem da tal Maria Fumaça.
“Essa é a composição que vai para Itabaiana”, dizia o vovô, sempre sabichão.


Cadê a roldana do quintal?
Fechamos o cacimbão, já não há mais corda e caneca.
Agora temos essa moderna bomba manual.
Meu pai bombeava "de com força", a gente em baixo,
e o jorro d’água molhou nossas almas com alegria e fugacidade.
Antes era o poço.
O olho do poço.
O rangido exupèryano da corda enroscando-se, cobra molhada, na roldana, serpeante.
Ou desenroscando-se, ligeira, vruuummm!, tibungando no fundo do poço.


A bomba e a roldana; tudo agora mudou-se aqui pra dentro.
Minha alma agora é feita dessa líquida recordação,
que às vezes escapa dos olhos, lágrimas fundas de água do poço de mim.
Vozes antigas, risos no caminho de Tejipió,
a fumaça do trem que já passou, sumiu na curva do pontilhão,
escondeu-se ali, na estação Coqueiral.


Tenho páginas amareladas de livros antigos, saudade,
e minha alma, as costuras aparecendo nas lombadas, sou avô de mim mesmo.
Sou uma colcha de retalhos miúdos,
pacientemente costurada por mãos hábeis;
sou vovó, todas as tardes, as agulhas transpassaram-me, passaram...
Eu sou esse ajuntamento de retalhos costurados por dentro.
E isso que escrevo agora e que escreverei,
são as minhas costuras aparecendo, e um livro velho rasgado no lombo.
O avesso surge dessas páginas, feitas do tecido que não reneguei de meu passado.







Ler hoje essas notas confusas, esses apontamentos sem data, é, para mim que os escrevo, que escrevi, que os escrevivi, uma estranha regressão de memórias da vida passada. Dá-me a mesma vertigem, a mesma comoção que sentia ao olhar o fundo do poço, no olho escuro do poço. Foi ali que aprendi a mergulhar em mim, em meu eu mais profundo e sombrio, em meu poço lodoso, nesse meu escuro cacimbão...


O poço..., sim, havia o poço. No oitão da casa de meus avós havia uma cacimba, um cacimbão. Paredes lodosas e frias. Pequenos cogumelos brotavam, frágeis e amarelos, contra o verde lodoso. Um balde de estanho, preso a um moitão, tibungava na água ensombreada, a meu comando. Ouço ainda o ranger bucólico daquela corda enroscando-se na roldana. As horas se passavam pachorrentamente, enquanto eu, debruçado à mureta do cacimbão, olhava, absorto, o espelho d’água. Piavam as bem-te-vis, nas árvores mais altas do quintal. Assim descobri Jorge D'antas, esse eu, quase eu, mais que eu. Ele olhava com estranha fixação a cacimba, funda e misteriosa. O poço tinha um olhar de abismo e no seu olho via-se outro mundo. Assim encontrei Jorge, olhava o poço, o fundo de si mesmo, o espelho do poço, ele, profundo, a roldana, o rangido, bem-te-vis que piavam insistentemente, vendo bem, não se sabe bem o quê, nas copas dos oitizeiros, das mangueiras. Jorge era uma voz bem no olho do poço, essa voz, esse poço que trago da infância, a porteira, o portal de outro mundo, o quintal suburbano, a saudade na água de um poço perene, eu, por dentro, minhas paredes lodosas, onde brotam, frágeis, pequeninos, cogumelos saudosos. Range a corda e a roldana, ouço a voz, tão querida, a voz, os avós; minha voz que ainda ecoa, neste poço, cá, acolá, outrora e agora...

***

Os ruídos da tarde me entram pela janela entreaberta.

Revejo a pitombeira raquítica.
*
Uma criança chora em meu olvido...
*
Em meu ouvido, um galo canta preguiçoso.
*
Óxente! Frases soltas me escapam sem os grampos rígidos da linearidade...
*
Os cabelos do tempo em desalinho...
*
Fujo da lógica compulsiva desses discursos-sem-ventania.
*
Anotações indisciplinadas e assistemáticas.
*
Apontamentos da enxurrada.
*
Produtos de uma ordem interior que é aparentemente caótica.
*
A fruta de uma intensa auto-observação.

***

Marília atravessa a praça arborizada em uma bicicleta bela e azul.
Todos os raios buscam o vazio do eixo central.
O Tao. O Vazio. Marília, transcendental, no cinema: filmes em cinemascope de cristal.
E minha avó (ou era minha mãe) me chamando da porta da cozinha.
Um cheiro de manga-espada, um gosto de fruta-pão.
Lá nos fundos, sempre o poço.
Esse poço que me olha com um olho de sedução:

***

Zoom:

A escada do sótão também é helicoidal. Espiralada lembrança. Rua Leão Coroado, 20. Insubmissas lembranças que não se fazem palavras: só cheiros, cortes na pele, ruídos, fundos silêncios, cores alvas dentifrícias, saudades sem face, fantasmas que se engavetam junto com meus manuscritos amarelados.







Minha alma é helicoidal como essa escada do sótão; meu corpo, um velho sobrado que insiste em ficar de pé.

(Só bem depois, já maduro, eu conseguiria percorrer a escura escada espiral dessa torre joyceana:

 Suba, Jorge. Suba, poeta execrável!
 Mestre Linz, eu preciso aprender a pintar aquarelas...

***

A propósito de aquarelas, o Mestre me alertava de que o gesto de pintar, a pincelada, deveria ser repetido milhares de vezes no ar, sem tintas ou pincel, isso antes de se iniciar, efetivamente, a pintura. Esse exercício faria com que o traço surgisse perfeito ou próximo da perfeição.


 Ah, Mestre..., os automatismos não servem apenas à arte pictórica. Estão nas coisas mais comuns. O gesto trivial de lançar um balde no fundo de um cacimbão, tantas vezes repetido, logo se tornará maquinal, automático, instintivo. Alguns gestos, de tão repetidos, nos surpreendem ao nos vermos fazê-los, com em dèjá vu.


Abanar o fogareiro, as brasas estalando como estrelas na noite fria.
Acender, com as mãos em concha, o mesmo cigarro de palha.
Saudar passantes conhecidos com o chapéu.
Levar à boca uma ancestral broa de milho.

Instintivas tradições, trejeitos, mesuras ritualísticas, litúrgicos meneios de cabeça. Nãos e sins, essas falas do corpo, mil vezes repetidas, que já não percebemos ao dizê-las. Cristalizações intra-históricas...

Ontem enfiei a mão esquerda (ou foi a direita?) na lama escura da maré, a perseguir um pequeno crustáceo esbranquiçado, um sarará.

***

...um telefone toca, quase inaudível, dentro dessas minhas evocações. É Concha, na clandestinidade. Digo alô, distraído. “Alô, Jorge, preciso falar contigo, pessoalmente.”

***

São 11h e 55m, o cais está apinhado e me chega o alarido de entidades feitas de verbo. Forro a mesa (toalha de estampas multicores) na presença desses seres invisíveis. Famintos, esses passageiros são arrastados de mim por coletivos ruidosos e fumarentos. O sol esquenta as águas do Capiberibe, do Beberibe, e de todos os outros rios que atravessam o meu prato de feijão com arroz. Sento-me à mesa com os passantes, que me espiam olhos de espanto. Encho o cálice, transbordo.

– O que deve estar se passando com minha amiga? Concha não me ligaria sem um motivo... Deve ser algo sério: ela gaguejava.

***

(A ex-mulher levou a primogênita ao dentista.) O mais novo espalha seus brinquedos pelo chão da sala. Estou pajem. Do vizinho, um gavião estridente, garras afiadas, sons do futebol: o sinal do tempo marca! Avisa-me o rádio que é meio-dia na capital pernambucana. Sinto-me exausto e entediado.

***

Mariana (ou Marília, como queiram) cita Memei: “não te doa a obrigação de repetir, vezes e vezes, esse ou aquele esforço que consideras de sacrifício.”

Entre garfadas, eu medito.

“Se já te aceitas na condição de criatura imperecível, reflete no tempo gasto pela Sabedoria da Vida nas criações da Natureza.”

***

No entanto, os ruídos em meu estômago lembram-me o peso de existir. Espanto-me com os movimentos involuntários das minhas entranhas. Eu sou essas vísceras que se espantam.

***

(Há um vaso, branca porcelana, flores vermelhas de crochê. Automóveis enfileirados, enfileirados brinquedos que o filho mais novo não guardou).
Natureza-morta?
De que adianta perquirir o enigma das coisas, vaso, flores, brinquedos? As coisas existem apesar de minha ignorância do sentido que nelas possa haver. Estranha e tola essa minha mania de compreensão. Mariana/Marília dizia ser a minha fascinação pelo Todo. Deixemos então o crochê vermelho das flores, o vaso branco. Respeitemos a desordem do mundo espalhada nos carrinhos-de-plástico de meu filho. Por certo há bastante metafísica em não pensar. Aceitemos, pois, submissos (ai, vergonhosa resignação) a ordem caótica do que já é. Preciso me lembrar que houve um tempo em que eu nem estava aqui. Entretanto, como negar a necessidade (ou a necedade) de traduzir o meu espanto diante do patente. Dizer as coisas que ora me atravessam é vital para mim. Imperiosamente vital. Mesmo que as palavras fujam,  lebres assustadas com o barulho que faço ao existir,  tento expressar-me. Apesar de impossível a Palavra, exata tradução do que digo dentro de mim, arrisco-me ao dorido/lúdico esforço de falar.
E falo... Falo? Eis aqui uma palavra traiçoeira como o áspide.
Canto. Soa melhor.
Minha Língua, faca amolada, canta cortante e me corta.

***

(Há um vaso branco sobre a mesa avermelhada flor de crochê carros brincando na desordem do filho que não guardou natureza morta?)


►III




►alea índex





►VII (sugestão de nexo)