sábado, 31 de julho de 2010

XI - VARINHA

OU

A RAZÃO VITAL E O ESFERISMO

Fragmento de oficina literária do Mestre Jöhan Linz - Grupão da Várzea, 1974
(sob os auspícios dos padres holandeses e sob os olhares vigilantes da censura)




(...) Num passo memorável de suas Meditações do Quixote, José Ortega y Gasset compara a razão com aquela varinha, usada para verificar a profundidade do leito de um rio que se pretende atravessar. Considerar a razão, assim, como um instrumento de verificação de profundidade, a transforma em algo tão próximo de nós quanto um dos cinco sentidos.
A razão, sustenta Ortega, é uma função vital da mesma linhagem que o ver e o apalpar. Por isso, talvez, nos aconselhava a “palpar com a pupila a pele das coisas.” Nessa frase a visão é quase um tato, mas esses dois sentidos, ao se fundirem numa mesma oração, revelam o que queria Ortega dizer, de fato: a compreensão da realidade é a questão de fundo, quando se percebe a Razão enquanto função vital. Para viver é preciso compreender, e isso implica em pensar, raciocinar. Não se pode então separar a vida da razão.
Penso com meus olhos minha boca, minhas mãos, penso com o meu corpo todo, dizia Álvaro de Campos, o poeta sensacionista. Ortega aduziria: penso com minha própria vida. Assim, palpo a realidade, as coisas, com os meus olhos, com a razão vital, com a minha vida.
Decerto, entender algo significa inseri-lo no contexto da minha própria vida. E, assim, observar como esse algo funcionaria nela. Chegamos à irremediável conclusão de que a vida é o próprio órgão da compreensão.
Neste ponto, podemos inserir a compreensão da obra esferista à luz da razão vital, se é que existe isso!

(Ouvem-se risos e aplausos na platéia embevecida. O Mestre pigarreia e prossegue):

(...)É ainda Ortega quem nos ilumina ao tentarmos esclarecer a proposta aberta da obra esferista, quando afirma:

“Não existem mais que partes na realidade;
o Todo é a abstração das partes e delas necessita.”


(Com maestria o velho professor Linz nos apresenta a amarração entre as partes e o todo, garantindo que essa coisa ilógica e com um nexo nada comum, chamada obra esferista, não é um produto de loucos extravagantes, é pura invenção, é arte):

(...) Desde que a platéia, aqui é, em sua maioria, composta por dramaturgos, cineastas e escritores, (como já me fizeram saber), pretendo dirigir-me, preferencialmente, aos jovens romancistas que desejam enveredar pelas corredeiras desse caudaloso rio esferista.
Trata-se aqui de compreender, orteguianamente, a obra no contexto da vida humana. Apesar de ser um esquema didático o que lhes vou apresentar abaixo, não esqueçam que a compreensão final da obra se dará no âmbito de uma vida: a do leitor. A ele compete a derradeira modulação do que criou na obra o autor esferista. É como se o leitor fosse o violinista solitário, a quem caberá executar as harmonias desencontradas de uma composição dodecafonica. Apresento-lhes, então, a varinha esquemática para a avaliação da profundidade do rio que terão de atravessar.

Pois bem:

O escritor esferista, tentará, à maneira dos cubistas, mutatis mutandis, urdir sua trama em planos (partes do todo) quadridimensionais: superfície, profundidade, perspectiva e ritmo. Não representa, mas apenas sugere a estrutura dos personagens, do ambiente e da ação, que chamaremos de objetos esféricos. Representa-os como se girasse em torno deles, como um cinegrafista eisensteiniano, vendo-os sob todos os ângulos visuais, por cima e por baixo, percebendo todos os planos e volumes.

Principais características da enarrativa esferista:
◊* geometrização das idéias;
§* multiplicidade de perspectivas;
۞* a linearidade capitular perde sua função;
۩* sensação de escritura atemporal;
♫* musicalidade da obra, com volteios no tema, como numa peça sinfônica.

O Esferismo tem duas modulações:

Esferismo Analítico – caracteriza-se pela fragmentação da obra em todos os seus elementos. Decompondo a obra em partes, o artista registra todos os seus elementos em tramas sucessivas e superpostas, buscando a visão total dos objetos esféricos, mostrando-a por todos os ângulos de um mesmo instante.

Esferismo Sintético - considera excessiva a fragmentação dos objetos esféricos que acarretava a quase destruição de sua estrutura, tornando as obras muito herméticas. Basicamente, essa tendência procurou tornar os elementos do texto esferista novamente reconhecíveis. Também chamado de esferismo matérico, porque introduz letras, palavras, imagens como artifícios gráficos e de referência, apropriações, paráfrases, e até obras inteiras, parodiadas em sua estrutura romanesca.

..Essa inovação pode ser explicada pela intenção do artista em criar efeitos ideoplásticos de intertextualidade para ultrapassar os limites das sensações visuais a que a página está restrita, despertando também no observador sensações sinestésicas, em um sentido lato dessa palavra(...)


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► XII