sábado, 31 de julho de 2010

XVI – ÁPTERO







...Era um domingo sem asas. Marília insistia em fotografar os barracos da Ilha-sem-Deus. Trabalhava em uma grande reportagem para o tablóide “Uma Voz Socialista”. Era sempre assim, determinada. Pés no chão. Uma idéia e uma câmara fotográfica na mão. Não. Não eram apenas idéias. Eram convicções.
Eu preferia voar. Porém, estava áptero (tomei essa palavra emprestada ao Getsêmane Barros – áptero – bela palavra, quase flutua, mesmo sem asas.).
– Acorda, Jorge, chegamos!
Descemos do ônibus uma parada antes. Marília decidira atravessar, a pé, os 600 metros da velha ponte sobre o Rio Pina. Quase à metade do caminho, debruçados ao parapeito de ferro, contemplávamos o estuário. Marília jogava pelotas de papel nas águas dos rios. Permitia-se, por um momento, essa brincadeira, que entendia ser politicamente incorreta.
– Claro que não se deve poluir o rio, Jorge, zombava.
– Os rios, no plural, Marília! São vários. Nesse ponto se encontram o Tejipió, o Pina, o Jordão e um braço morto do Capibaribe que chega aqui contornando a Ilha do Retiro, o Coque e Afogados. Além desses, o Beberibe, que, depois de abraçar o Capibaribe por trás do Campo das Princesas, vindo pelo cais de Santa Rita, também chega a esse belo estuário. Todos eles juntos formam essa foz alargada que é conhecida, impropriamente, como Bacia do Pina...
– É verdade! Muito bonito esse encontro dos rios. É uma das belas vistas da Cidade. Mas, eu não sabia que o poeta Jorge Dantas era versado em Geografia...
– Gosto de estudar tudo o que diz respeito à minha cidade.

Alcançamos a Rua Herculano Bandeira. Céu nublado e mormaço. O dia quer se arrepender, avisa-me ela. Sentamos no Bar da Algaroba. Entre cervejas, Marília tece lentamente uma prosa persuasiva e quase inconsútil. Faz metafísica, faz graça. Constrói tratados poéticos. Questiona Deus e o sistema, entre goladas espumosas. Pequeninas folhas caem sobre nós. Sopra uma aragem vinda do mar. Seria melhor uma filmadora! Passaram alguns amigos e nos saudaram. Marília, absorta no discurso que ia construindo, quase não os percebeu. Parecia mesmo uma aranha urdindo uma teia sem costuras. Falava mansamente, voz fricativa, enquanto mordia a ponta dos cabelos...

 Até mesmo uma Super 8, já nos serviria...

Começa a cair uma chuva fininha, chuviscos, sobre o bairro do Pina.

***

A cidade também parece uma aranha. Uma teratológica aranha que emerge do Atlântico. E espalha seus tentáculos (ruas, rios) sobre os frágeis seres urbanos, pobres moscas, enredados na teia dessa metrópole nordestina.

***

Marília olha a cidade com certa ternura, mas se revolta. Questiona esse crescimento desordenado. Essa favelização de todos os seus bairros. Há favela em todo lugar. Até no Recife Antigo, bairro que se diz ‘revitalizado’, há a favela do Rato. Sob a Ponte do Limoeiro, há uma comunidade de pescadores, catadores de lixo, gente das ruas. Parece um bloco de apartamentos, sob a estrutura da ponte.

A cidade está sitiada, Jorge! Somos um Canudos às avessas. Os descendentes do Conselheiro vêm bater à nossa porta. Enquanto não for resolvido o problema da água no Sertão, do latifúndio, teremos sempre essas levas de flagelados, desembarcando em nossa cidade. Farei um levantamento detalhado, em preto e branco, das mazelas desse povo ribeirinho.

Jorge, faça-me uns textos contundentes, denunciando essa situação de miséria! Eu sou o cine-olho. Viva Dziga Vertov!

Enquanto fala, seu corpo pequenino estremece de indignação. Apalpará os tentáculos destruidores da aranha! Quer poemas sobre moscas, gente perebenta, camelôs, putas, pedintes, trombadinhas, meninos de rua! Abaixo o lirismo que não é libertador! Jorge, eis nossa bandeira!

Como pude resistir à voz de uma mulher assim, potente e iluminada? Como?

***

(Desço do ônibus, suado, agoniado. Ainda chove fino. Corro pro quarto e me tranco).

Rói-me um cínico remorso: pertenço à raça abjeta dos construtores dessa sociedade necrófila. Ah, se eu pudesse, minha amiga, traduzir a náusea desse instante. Poemas pejados de nojo! Manifestos exaltados contra o sistema, contra os opressores fardados!

(Escondo o rosto entre as mãos. Choro convulsivamente).

Marília desnuda, sem querer, meu imenso sentimento de culpa. Freudiana, lembra-me o Édipo, de Sófocles. O dono do Bar da Algaroba fez sinal que queria fechar.

Noite áptera no domingo sem asas. Ícaro volta a pé...



►XVII

XLI◄ (sugestão de leitura)

►alea índex