ARREMATE






Manhã de segunda-feira.
Cruzo a ponte Maurício de Nassau, distraidamente. Vou ruminando o insólito Recife osmaniano que acabei de ler:

"A caminho da Delegacia Fiscal, atravesso a Avenida Rio Branco e vejo uma aglomeração perto da ponte Buarque de Macedo. Automóveis e ônibus arrastam-se em marcha lenta. Ouço comentários esparsos na esquina do Niágara... há um corpo estendido sobre o calçamento do cais do Apolo. De que morreu? Sabe-se quem é? Um desconhecido, o rosto coberto por jornais. Suicídio ou acidente?"

Afasto-me pensativo a caminho do cais do porto. Leões osmanianos zumbem entre os sobreviventes apressados. Zumbem leões dentro de mim.

***

...Anteontem, depois de ter lido e relido, várias e demoradas vezes, a carta do afamado beletrista, Dr. Abdenego M. de Souza, resolvi ir até o ateliê do Mestre Jöhan Linz. Estava deveras perturbado. Não imaginava – santa ingenuidade! – que a minha obra seria tão destratada. Pus-me a caminho do ateliê, ruminando essas coisas. Era de tarde e o sol ainda estava alto. Procurava, como de costume, a proteção das ruas ensombreadas da Boa-vista. O Mestre já havia mudado do velho endereço da rua dos Prazeres, 50. Alugara um sobrado antigo e espaçoso na Leão Coroado. Ficava no 1º andar e tínhamos de subir uma escadaria de madeira. Não havia ainda a campainha e nós gritávamos bem alto da calçada em frente. Eu e o Mestre andávamos tão sintonizados que muitas vezes ele punha a cabeça na janela antes mesmo que eu o chamasse. Dizia que percebia meus fluidos ao longe. Nunca liguei muito pra isso. Mas hoje estou mais próximo de crer. Minha mente está em um estado próximo dos êxtases místicos. O estado de numinoso jungueano.

Era talvez por esse tipo de ligação que eu estava indo procurar o Mestre naquela tarde. Precisava de alguém que me ajudasse a fazer uma sincera autocrítica. Causou-me um choque a carta do eminente doutor. Tantos meses de trabalho. Dura rotina diante de uma máquina de escrever. Dores nas costas e outras algias incômodas. Meses de pesquisa. E como é difícil a pesquisa de um autodidata! É um tal de procurar aqui e ali. Escreve pra um. Aborda outro nos congressos, nos vernissage, palestras. Uma luta! Pra depois...isso. Uma crítica demolidora! Aviltante! Conversar com o Mestre me faria bem. Ele sabia como ninguém levantar o nosso astral. Era uma grande alma! Um mahatma! Seu pensamento esferista me abria a mente. A ele, de certo modo, devia a sustentação teórica de meu trabalho. Embora não fosse escritor, suas meticulosas argumentações sobre a arte me moviam a pena. Era plural, o velho bruxo da Boa-vista. Era, como ele mesmo gostava de dizer, esférico...

-- Porque tu falas tanto na morte em teus textos, Jorge? A morte é apenas uma passagem para outra instância. Como uma mudança de estado na matéria. Somos imperecíveis, meu amigo. O ser é indestrutível. Nada verdadeiramente se destrói. Tudo está mergulhado no transformismo fenomênico. Falas de uma entidade que não tem existência em si mesma.

-- Mas eu não falo da morte em meus textos, Mestre. Pelo menos diretamente. Tudo o que faço, penso ou escrevo, busca algo que está na morte e que, no entanto, não é a morte. Minha linguagem é a economia-do-medo-de-findar-no-sem-sentido. Em todos nós habita, de algum modo, esse projeto, secreto e inútil.


Minha mãe me dava muitos livros. Meu avô me dava muitos livros. Eu então me trancava no quarto. O meu quarto era o dos fundos, o que dava pra Pitombeira. Ali os sorvia, cada capítulo, frase por frase, com uma avidez estranha. Quase em transe! Foi por esse tempo que comecei o meu projeto. Secretamente, transformei a arquitetura do quarto. Construí portas secretas que davam pra outros mundos. Janelas que davam pra amplidão. Mamãe me via escrevendo e dizia que era melhor que eu cuidasse de estudar e parasse de copiar modas. Modas, quer dizer, modinhas, canções. Na época eram populares os jornais-de-samba, folhetos com as músicas preferidas do rádio. Não, Dona Joaninha, não eram modinhas. Não se preocupe, Seu Cabral, seu filho não é um maricas. Não eram modas, eram poemas. Os mesmos que eu um dia iria queimar em uma de minhas crises depressivas. Poemas fugazes de paixões mais fugazes ainda. Alguém me disse, foi um desperdício, a cremação. Deveria ter queimado meus desencantos por dentro. Ora, meus desencantos só findariam se eu me atirasse às chamas. Eu era covarde demais para o ato. Tremi. Não era ainda meu dia... Menino, abre esse quarto! Ó Jorge, apaga essa luz!...


Dezessete andares, possui o prédio do Banco. Construção dos tempos milagrosos da ditadura, ergue-se, imponente, entre o rio e o mar. Daqui de cima pode-se ver todo o Recife Antigo. A brisa do Atlântico sopra forte e faz tremular a bandeira azul e branca que foi fincada aqui na cobertura. Lá estão os rios de minha terra! Encontraram-se por trás do Palácio do Governo e seguem abraçados para encontrar o paredão do cais do porto. Conseguiria eu, ajudado pelos ventos do oceano, conseguiria eu, num salto-pássaro-audacioso, alcançar os cães implumes, mergulho profundo nos rios-irmãos?


Sempre amei o rio, a lama, o manguezal. Pensava em misturar-me ao povo ribeirinho. Lá estão as baiteiras! Olha lá! Meninos pardos mergulham cinzentos na lama escura para apanhar mariscos cor-de-chumbo. Vida sem cor dos miseráveis! Do Olimpo, espiam indiferentes os demagogos e os tecnocratas. Dói ver a indiferença dos deuses...

Houve um tempo em que me afastei do convívio dos intelectuais e artistas que freqüentavam o ateliê do Mestre. Busquei a amizade dos pescadores. Conversas de aprendiz com os mestres-de-barco. Farras com os lúmpens das palafitas da Ilha-sem-Deus.Tentativa inútil de me sentir povão. Mas, sou um homem marcado. Indigno de viver entre os humildes. Confesso-me um forasteiro entre os simples. Um espião no meio do povo da maré. Um fingidor! E os que lêem o que escrevo sentem bem, a dor lida. Não a minha dor, fingida, mas a dor que eles não têm...


Entre mim e o rio quantos metros? Quantos segundos? Dez metros por segundo ao quadrado. Entonteço. Vertigem. Ânsia de saltar, pássaro breve. Impulso Livre era o título de um de meus poemas adolescentes. Falava de um salto: a queda em liberdade, o vazio e a brisa, breve carícia em minha face. Dez metros por segundo ao quadrado. Deliciosa, a gravidade; poética, a impulsão...saltei?

O herói aristotélico é um homem bom que comete um erro trágico (hamartia). Caminhar cegamente (peripetéia) é o erro trágico: pretende alcançar um certo resultado e consegue o oposto. Finalmente, chega à percepção da verdade (anagnorisis), ao abrir de olhos, ao tardio clarão que ilumina a escuridão, e reconhece o que fazia a si mesmo.


...Saltei. E o Capibaribe, ou o Beberibe, cães sem plumas cabralinos, estão margeados por faces estupefatas. Capivaras? Rostos estranhos na calçada à cabeceira da ponte Buarque de Macedo. Os passantes me apontam narizes curiosos. O que é que vocês fazem nessa loucura de vida? O que busca essa manada? Ouço o tropel de mil reses, mil, desgarradas. Os filmes que vi na infância. Epopéias sádicas de colonos bretões. Massacres de apaches desarmados. Velhos índios decrépitos, mulheres grávidas e pequenos peles-vermelhas dizimados pela briosa cavalaria americana...


O Capibaribe passa lentamente arrastando consigo o Beberibe vagaroso. Os carros passam lentamente. O tempo escoa, o tempo escapa, o tempo escorre lentamente, segunda-feira abaixo. Escorre o sangue de uma ampulheta, vagarosamente, e vai tingindo a calçada em frente ao Banco. Rente ao meio-fio desliza um veio, rubro veio, lama sanguínea, escorre pela sarjeta. Sinto na boca um estranho gosto de sal. Ouço, (ou evoco), uma lenta sinfonia ao longe: “A Vida do Herói, Poema Sinfônico, Opus 40, de R. Strauss”. Andamento grave, solene. Às vezes a música vai sumindo, vai sumindo, sumindo, sumindo, até que... ...reaparece em uma finíssima flauta. Finíssimo flautim em meus silêncios. Morrer deve ser assim: uma pausa no andamento imprevisto dessa sinfonia. Haverá um Maestro a reger tudo isso com sua inexorável batuta? Em certa fase de minha vida preocupei-me em demasia com isso. Aos poucos aprendi a conviver com o transitório ser sinfônico em que habito. Mansamente começa a cair uma chuva fina sobre a Mauritztad. As pessoas buscam as marquises do Banco e... ...a música cessa.


...Chove em algum lugar dentro de mim. E os pingos da chuva em minhas vidraças soam música. Dança na chuva um casal. Nas ruas da cidade dentro de mim, dança um casal. Mas, de repente, como em uma antiga película já desgastada pelo tempo, a música some. Dança o casal, mesmo sem música, ainda dançam, mas agora lentamente, slow motion, quase parando...Ouço então uma voz longínqua como um silvo, acutíssima. Uma voz? Um apito estridente? Uma sirena!

Ah, é uma sirena! Veio crescendo-me dentro, contínua e aflita, uma sirene agudíssima. Uma ambulância. Os esgotos sangram e avermelham a água dos rios que passam no Cais do Apolo. Há abelhas nas flores vermelhas do velho flamboyant. Explode branca, a ambulância. Os policiais espantam as abelhas e os curiosos. Deixam ficar apenas, vitoriosa e branca, a ambulância. Que é que essa gente tanto procura sob os jornais ensangüentados? Vejo, entre esses olhos curiosos, dezenas de olhos curiosos e estranhos, os olhos marejados de minha mãe. Que faz aqui dona Joaninha com esse olhar vazado?...Uma mosca irritante pousa em meus lábios. Tento afastá-la inutilmente. Começo a tomar consciência de meu estado. Essa mosca, tão frágil e diminuta, é, nesse instante, mais poderosa do que eu. Eu, --um legítimo representante de Homo Sapiens--, impotente diante de tão irritante criatura. Dominador dominado. Escravo. Entendo agora com clareza o que dizia Voltaire: “Em que consiste, pois, a vossa liberdade, senão no poder que a vossa individualidade exerceu ao fazer o que a vossa vontade exigia, com absoluta necessidade?” Mais livre do que eu, esse inseto. Irritantemente livre ao esvoaçar sobre meu rosto. Mas, o que digo? Será livre o irracional? Não sei suficiente metafísica para responder-me essa questão cartesiana. Mas, que importa agora a metafísica? Arre! Irritação fascistóide: vontade inútil de poder parar as asas rápidas dessa moça. Dessa moça? Ato falho. A impossibilidade é uma prisão terrível, moça. E acabo de tomar consciência de minha impotência diante de uma pequenina mosca. Vitoriosa, pousa sobre o meu nariz a mosca. Nada posso fazer nesse momento. A moça branca em trajes brancos troca por alvos lençóis esses jornais. Percebo, com alívio, o pequenino ponto esvoaçante afastar-se ante essa branca e providencial presença. Seus olhos me fitam com angelical ternura...


Os olhos vazados de minha mãe. Lembrança ruim: cuidava da enorme palmeira do quintal da casa de Tejipió, quando um dos talos, uma haste esverdeada, espetou-lhe o olho esquerdo (ou foi o direito?). Era danada pra se acidentar, Dona Joana. Outro dia prendeu o dedo na espreguiçadeira do terraço. Foi um Deus nos acuda! Ainda bem que morávamos na rua do Pronto-socorro. De casa ouvíamos as sirenes nervosas das ambulâncias chegando e saindo. Era uma correria como essa: a mesma pressa e o mesmo nervosismo. Pra que tanta correria, minha gente? O pior já passou. Nunca gostei de pressa. Nada para mim era urgente. Isso desde a meninice.


Tempo bom, o da meninice: tardes bucólicas com cantar-de-galos, sítios com mangas no Sancho... rio do Paul, rio Triângulo, -- piabas e traíras, águas tranqüilas --, passavam lentos pelas campinas-hoje-favelas. Tantas lembranças agora, por que? Parece até que um filme de minha vida rola, instantâneo, diante de meus olhos. E essa ambulância que não pára de correr? Será que não alcancei meu objetivo? Dezessete andares e uma rua com vento a favor.Não devia ter ousado. O nome desse cais não trazia bons presságios. Por que não Dionísio ao invés de Apolo? Seria mais aprazível à alma. Alma? Que alma?
Alma: do latim anima, o princípio espiritual do homem, concebido como separável do corpo e imortal.
Alma...sou uma?


Por coincidência, hoje é segunda e minha mãe dizia ser bom acendermos velas para as almas nesse dia. As almas carecem de luz, dizia-me.
Ouvindo o som estridente dessa sirene, creio que, antes de luz, as almas carecem é de silêncio. De silêncio e de paz...



Mandam-me flores. Coroas-de-flores, cravos, rosas, flores perfumadas, corbeilles. Meus pais as recebem sem a alegria de quem recebe flores. Alguns dos que as trazem conversam baixinho pelos cantos da casa. Mas,...foi por causa dela? Ela era apenas mais uma entre tantas na vida do Jorge. Uma entre tantas? Tento retrucar. Ninguém me ouve. Não. Ela não foi apenas uma mulher. Foi a afirmação de minha fragilidade como homem, de minha limitação enquanto pessoa. E não pensem que isto que digo (será que me ouvem?) trata-se apenas de autoflagelação. Não. É pura constatação de fatos. Ela surgiu nessa história em um momento incomum. Veio ao encontro de um processo que evoluía dentro de mim. Não era apenas Mulher. Era Signo. Trazia Cabala. Guardava, em suas mãos franzinas, o Destino. Não era apenas Mulher, mas Sortilégio.

Mandam-me, os parentes e amigos, muitas flores, coroas. Coroai-me de rosas, como na Grécia, dizia o poeta português. Coroai-me de rosas – rosas que se apagam em fronte a apagar-se tão cedo! Coroai-me de rosas e de folhas breves. E basta...


Alguém sugere a leitura de algum de meus poemas. Mas, os poemas...Eu os queimei. Vocês não sabiam? Perguntem ao Mestre. Foi anteontem. Estava em uma crise depressiva.. Pensando mesmo em desistir disso tudo. Então fiz uma fogueira lá atrás do Mercado da Boa-vista. Não foi, Mestre? Talvez tenha ficado algum dentro da velha agenda verde. Creio que essa agenda perdeu-se. Ou ficou com ela? Tive vontade de queimá-la, mas não a achei. Uma agenda pode ser algo cortante. Reabre cicatrizes. Abrir uma agenda é desejar viver o que já passou. E aquela era uma agenda feita de sonhos, doridos sonhos. Devia mesmo era ter queimado essas lembranças...


Mamãe achou a agenda verde. Meu Deus! Não estava com ela! Devia tê-la queimado. Não gostaria que todos aqui soubessem de seu conteúdo. Pra que recordar essas bobagens? Poemas, velhas anotações para um romance esferista, planos de obras nunca acabadas, minha guerra sem testemunhas, minhas coisas: minha nudez. Essa agenda realmente me desnuda. Um poeta se veste de palavras para ficar mais nu, dizia o Mestre. E tinha toda a razão. Véus ou nudez, a Palavra? indagava-me, certo dia, o poeta Getsêmane Barros, entre cervejas, no bar da Algaroba. Hoje, impotente diante dessa agenda em mãos alheias, chego à conclusão que procurávamos. Véus e nudez, a Palavra, Getsêmane, véus e nudez...


As alunas do Mestre Linz chegaram, trazendo rosas amarelas. Dizem que simboliza a amizade. Os artistas-plásticos gostam desses detalhes. Simpáticas e esteticamente perfeitas essas rosas, formando uma circunferência amarelo-ouro, solar. Circunferências lembram-me sempre as nossas fecundas discussões sobre o Esferismo. Deliciosas conversas etílicas nas tardes da Boa-vista. Sempre achei o Esferismo muito parecido com o Perspectivismo de Ortega y Gasset. Mas achava indelicado sugerir isso ao nosso generoso e sexagenário Mestre Jöhan Linz. Bons tempos...mas o grupo Esferista se dispersou. O Getsêmane depois que mudou pro Ibura, anda meio sumido. O Zenóbio e seus Fractais, quem viu? O Serpa Lopes, figura esguia e quixotesca, já o vi pelos cantos da casa, Poliana chorosa. Concha, sempre calada. As colegas da Faculdade também chegam, trazendo rosas nas mãos. Lembram-me os funerais do Claudionor: dei uma rosa vermelha a cada uma delas. As rosas ficaram sobre seu túmulo, inúteis. Mas que assunto triste é esse agora? E por que vocês estão me olhando desse jeito?


Os círios à minha dextra quase se apagam. Alguém, sacando um isqueiro, acendeu cada um, reverentemente. A pequenina chama tremeluziu, frágil, fugaz. Nós todos naquela saleta tremeluzíamos, frágeis, fugazes. Meu pai aproximou-se de mim, fugaz e frágil. Seu hálito familiar: já tomou uma! Beijou-me a face, coisa rara em seu Cabral. Não era dado a carinhos comigo. Não que não me estimasse. Fazia-me notar seu amor de outras maneiras. Era um abraço, um tapinha nas costas. Mas, beijinhos só nas meninas, Elaine e Dinéia. Eu era o machinho da casa. Ah, seu Cabral, por que não me beijou em outro momento? Mamãe se aproxima de nós com o meu Mestre do lado. Meu Deus, vão ler mesmo a agenda. Pra que reler esses poemas?

“Incumbimos dessa leitura o Doutor Jöhan Linz, pela proximidade que tinha com o nosso Jorge...”

...Faz-se um silencio sepucral. Mestre Linz abre a agenda em sua primeira página. Todos entreolham-se curiosos e reverentes. A sombra do Mestre projeta-se, gigantesca, na cumeeira. Ouço um dobrar de sinos. Há uma igreja aqui perto? Desabam sobre mim as palavras do Mestre, marteladas, as palavras, retumbam em uma bigorna. Caem pesadas, as palavras. Pancadas de aldrava em nossos tímpanos. A dútil voz do Mestre rasga uma trilha no silêncio. Ecoam as palavras, minhas palavras, dentro de minhas recordações. Façam-no parar! Não me façam reviver essas dores. Estão surdos? Não quero ouvir isso! Nesse instante, ouve-se lá fora um bate-estacas. Escuto, aliviado, o bate-estacas. Breve erguerão um novo prédio no terreno baldio defronte à casa de meus pais. Ouço o ruído das máquinas. Ruídos modernos da vida. Eh, mundo lá fora cheio de vida! Vozes álacres crianças jogando bola, buzinas, o pio das aves! Salve os ruídos do mundo! Mundo and roll! Pedras rolando! Rumores, canos-de-escape, locomotivas, pedreiras, soam sirenes, cargueiros, mundo lá fora rugindo, ciciando, estrugindo, ferreando! Invadam-me sons do mundo! O bate-estacas enterra estacas em minha alma. Sou um terreno baldio de mim mesmo em frente à casa paterna. Ritmado, o bate-estacas bate estacas. Ritmada, a voz do Mestre recitando. Por favor, parem com isso. Por favor, ninguém me ouve?...

***

Apesar da sombra benfazeja desses oitizeiros, jambeiros, mangueiras; arvoredo secular de aparência tão grave e imponente quanto a dessas edificações neo-clássicas onde abunda o mármore de Carrara; apesar disso não gosto, nunca gostei, de entrar aqui. Desprezo esses funcionários municipais, cabotinos, com ar fingidamente respeitoso, reverência mal-disfarçada, hálito de aguardente. Se eu pudesse nunca entraria nesse lugar. Tudo aqui me deprime. As flores ficam tristonhas nesses quartinhos contíguos e mal-asseados. Desolados e desoladores os cortejos atravessam o pátio arborizado. Os mais velhos persignam-se defronte da capela de Santo Amaro das Salinas. Um dos cortejos caminha em meu encalço, mas sem muita pressa, andar pausado e grave no átrio silente. O silêncio amplifica cada ruído. Piam bem-te-vis nas copas dos oitizeiros. Ouve-se um choro de mulher carpindo. Jogam-se flores sobre a terra revolvida de uma escavação recente. O que irão semear nessa abertura? Meu pai pede a pá ao funcionário de macacão azul. As pessoas começam a atirar, solenemente, uma após outra, várias pás de terra fértil sobre os cravos quase murchos. Estranha semeadura! Ouço uma voz familiar lendo um de meus mais tristes poemas... afasto-me compungido por entre as árvores frondosas. Tento conter as lágrimas quentes. Lágrimas fundas e purificadoras.
Do lado de fora desses átrios a cidade ruge. Rumores da vida lá fora me chegam da praça que há ao lado. Taxistas e floristas conversam sobre o tempo. Os ônibus, superlotadas esperanças, atravessam ruidosos a avenida da Saudade. Hoje é terça-feira nessa cidade das pedras que seguram o mar. Meus amigos e parentes mais humildes voltam pra casa a pé. Meu nome está nos corações saudosos.
Quem diria? Domingo ele esteve comigo no ateliê. Eu senti que ele não estava bem. Subiu as escadas mais devagar do que sempre. Dirigiu-se ao sótão, cabisbaixo. Um silêncio de impressionar. Pouco depois desceu, ainda calado. Pediu-me um café. Falou-me de uns originais recusados por uma editora. Estava meio ressentido com um certo beletrista. Despediu-se de forma estranha. Levava consigo um saco plástico cheio de papéis, que imaginei serem os seus manuscritos. Vi, de relance, meio escondida, uma garrafa de álcool.

-- Pra que esse álcool, Jorge?

Não respondeu. Desceu lentamente as escadas e seguiu na direção do mercado da Boa-vista. Depois disso não mais o vi. A notícia chegou-me através de uma tia, que mora aqui perto, nos Coelhos.

-- Seu Cabral ligou pra você. Lamentavelmente, aquele teu amigo, o poeta Jorge Dantas, alçou vôo...