sábado, 31 de julho de 2010

XII - AUTÓPSIA ...

...de uma paixão



Sentaram-se frente a frente, dispostos a exorcizar os seus fantasmas. Jorge, angustiado, pediu uísque ao garçom. Uma dose dupla e um guaraná. Estavam em um bar quase deserto. Mas isso era um detalhe de somenos importância. Seus olhos marejados não enxergavam o entorno. O mundo se reduzia ao espaço entre eles. O garçom pede licença e discreto põe sobre a mesa a dose de uísque e o refrigerante. Um gole entra pela garganta seca. Outro gole. Das bocas surgem as palavras-farpas. Mágoas amargas. Dois fantasmas desolados se encaravam. Onde a sintonia dos primeiros dias de paixão? Jorge relembrava dos arrepios que atravessavam seus corpos nas primeiras semanas daquele setembro em que se descobriram amantes. Marília, calada, o olhava, entre aflita e exausta. Desencontros e desencantos afloravam todos de uma só vez.

Preciso ir embora, Jorge, não posso ficar muito tempo na cidade. Eles já me descobriram. Pedia, com voz embargada pelas lágrimas, que escorriam por trás dos óculos embaçados.

Foram pequenos instantes, longos e dolorosos. Admitir os próprios erros e aceitar as culpas, já é em si uma dor. Porém maior é a dor a dois. A dor desiludida e desgastada de um fim de caso.
Por que as mentes não mais captam o que dizem as palavras? Marília, perplexa, já não consegue se fazer entender. Jorge, agoniado, já não argumenta nada compreensível. As palavras já estão gastas e vazias de linguagem. Vocábulos vazios, fonemas átonos são ouvidos, nada mais.
O dono do bar, recostado ao balcão, esforça-se por ouvir o que dizem. As lágrimas dizem tudo, na paixão. A paixão intensifica o sentido da dor e da alegria. Quando se dá o ocaso de uma paixão, até mesmo a vida perde seu sentido. O dono do bar reflete sobre as dezenas de vezes em que viu cenas iguais àquela. Intrigado, pergunta-se por que os casais sempre resolvem chorar naquela mesa do canto.
Jorge e Marília renunciavam ao vínculo já desvanecido, por medo da dor. E dói muito, o medo de sentir dor. Jorge entornou o resto do uísque que havia no copo. Chegara a hora fatal. A conversa já não mais fazia sentido. Durara o tempo de tomar uma dose de uísque. Um amargo uísque de terceira.
Juntaram seus cacos de sonho desfeito e saíram do barzinho. A noite do Pina ostentava uma lua abusada e inconveniente. Um abraço e um beijo calaram suas vozes.

Seja feliz, Jorge. Depois te mando os teus discos do Chico.
Vou tentar, Marília ...

A noite do Pina estava em burburinho: prostitutas, poetas e marujos zanzavam, ébrios, pelas ruas da zona.
Jorge Dantas, atordoado, entra num táxi. As sombras da avenida o encobrem tristemente. Seria a vida uma aventura louca e sem sentido? Ou seja: valeria a pena seguir vivendo?


►alea índex

►XIII