sábado, 31 de julho de 2010

IX - TRIPÉ

...O tripé que sustenta a Super-8 parece um louva-a-deus. Sua cabeça miúda aponta para o cais da Aurora:
O rio calça as botinas do lixo e da lama brotam pneus, flores inúteis. A vazante desnuda o Capibaribe. Jazem, nesse leito enegrecido, pequenas balsas e baiteiras, encalhadas feito capivaras moribundas. O velho rio, agônico, bebe o vômito que escorre pela boca das sarjetas.

Seres entrópicos é o que somos. Erguemos túmulos
às margens dos rios e os batizamos: Cidades.

Ajoelho-me sobre o pequeno inseto. Suas patas dobráveis inclinam-se sobre o cais. Sinto-me um lepidóptero. Minhas palavras, asas enlameadas. O rio escorre de minha boca, trompa espiralada, em sons inaudíveis, desce de minha alma, larva de tungstênio, cruza a Cidade, crisálida, casulos miseráveis, povo ribeirinho, mangue, o rio escorre de mim. Vem do mar e volta ao mar, dentro de mim: abissal é o eu-profundo. E o rio, este que aqui escorre esfereográfico, é o rio nascido de minhas entranhas. Seu nascedouro: um lago vulcânico em algum lugar de meu interior. Não é mais o rio que vejo (que via) sentado nas pedras do cais. Este é o rio sinuoso das minhas correntezas mais fundas. Sinuoso e enganador como as palavras que invento. Invento? Caminhando à margem (do rio?) ouço, quase mediunicamente, a voz, a fricativa voz da brisa recifense. Sussurra-me uma mensagem ultrafanica. O rio escorre hac hora da boca do Tempo: oiço vozes que não invento. Frases de vento. Inolvidáveis correntes que fluem de um rio invisível. Psicografo?
Foi em meados de 1972 que li A Queda, de Camus. Um livro agudo como uma adaga. Percorri com o Juiz um cais imaginário. Fitávamos, peripatéticos, aquelas águas turvas e agonizantes (do Sena ou do Reno?). Teço, hoje, esse cais de palavras. Pode haver uma relação distante e atravessada entre as águas do Capibaribe, que hoje escorrem enlutadas, e o monólogo do Juiz-penitente?
Do cais da Aurora o rio revisita, em sua língua morta, o cântico universal da dor humana. Rio perpétuo e surdo, as serras esboroas, / Serras e almas, ó Tempo! / e, em mudas cataratas. / As tuas horas vão mordendo, aluindo, à toa... / Todas ferem, passando: e a derradeira mata.
As águas poluídas da minha alma turva e impenitente amaldiçoam as cidades erguidas sobre a lama dos homens. Através dessa olho-de-peixe, os diques lodosos me chegam distorcidos, imagens baças, circulares. A vida me vem enviesada, distorcida, circular. A lama. O lixo. A lama. Tento revelá-la nessa fraseologia em preto-e-branco. O rio corre para o mar enlameado. Vejo um rosto lamacento no espelho que trago entre as mãos. As horas passam fluviais e atravessam essas páginas amareladas. Amarelentas, passam as horas. A maré, lenta, conta e reconta suas enchentes, sua vazantes. A maré lenta: um relógio lunar. Lembro de uma frase que costumava ser escrita nos mostradores dos relógios antigos: Vulnerant omnes, ultima necat... O rio, moribundo, aguarda a sua hora, a derradeira, agonizante. Abraçado ao louva-a-deus, recito Bilac: E bendita, que, sobre a minha cova aberta, / Pairas, última, ó tu que matas e libertas!


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