sábado, 31 de julho de 2010

I – MADRÉPORAS

Jean-Paul Sartre (em uma amarelada ficha de leitura):“O que significa a literatura, num mundo que sofre fome? Como a Moral, a Literatura necessita ser universal. O escritor deve, pois, se colocar do lado da grande maioria — dois bilhões de famintos — se quiser dirigir-se a todos e ser lido por todos.”



...Jorge Dantas está sentado em sua velha cadeira giratória. Olhos distantes. Aparentam tristeza. Da varanda  de seu kitchenette, contempla o anfíbio bairro do Pina. O areal...,  a maré...,  a Ilha-sem-Deus.

Desempregado, ocupa-se com a ordem possível para a pequena biblioteca improvisada, num recanto. A pequenina Olivetti Lettera, adquirida com a indenização trabalhista, descansa na bancada, também improvisada sobre cavaletes. Jorge agora vive do improviso. Tenta remir o tempo: organizar a vida, os papéis, as amareladas fichas de leitura.

Acaba de trancar o curso de Filosofia. Os tempos andam difíceis. Crises conjugais, financeiras..., existenciais. Reabsorver a circunstância, diria Ortega, esse é o destino concreto do homem. Mas, como saber a que se ater ante os inumeráveis problemas da vida humana?

Olha pelo janelão que dá para o poente. Vê, por cima do telhado das casas vizinhas, a miserável Ilha-sem-Deus:

Como compreender o que faz aquela gente aceitar assim, tão resignadamente, sua miserável circunstância? Uma resignação, aparentemente, estóica e orgulhosa de si mesma. Orgulho de mártires! Quase épico!
Mas... será mesmo assim que eles se sentem?

Talvez nem tenham plena consciência disso, imersos que estão na sua miserabilidade. Vivem como madréporas, esses minúsculos animais submarinhos que sustentam os recifes de coral, numa vida vegetal e submersa. Têm a alma mergulhada na lama. Jorge recita Miguel de Unamuno:

“Os jornais nada mencionam da vida silenciosa dos milhões de homens sem história que, a todas as horas do dia e em todos os países do globo, se levantam a uma ordem do sol e vão a seus campos, prosseguindo no obscuro e silencioso labor cotidiano e eterno...”

No rádio, a voz nasal e sincopada de Jackson do Pandeiro canta:

“caranguejo uçá,
caranguejo uçá,
apanho ele na lama
e boto no meu caçuá...”

Qualquer hora dessas vou botar meu chapéu de palha e dar uma volta entre os pescadores, jogar conversa fora, espairecer. Observar o paciente labor dos consertadores de redes de pesca; misturar-me a esses anônimos moradores da maré, subempregados, sem nenhuma assistência do Estado, que, apesar das agruras, vão tocando a vida como podem, nesses barracos fincados na lama do mangue. Alheios ao contexto e à história, resignam-se, estranhamente, nesse labor unamuniano:

“...Esse labor que como o das madréporas suboceanicas, deita as bases sobre as quais se levantam as ilhotas da História.”

Jorge guarda os papéis, decidido, por fim, a sair. Os conceitos de Unamuno fincam-se em sua alma como as raízes do mangue na lama...

...Só compreendendo o conceito de intra-história é que podemos aprofundar nossa familiaridade com esses seres sem face que nos cercam. Pois é nessa vida intra-histórica, como a dos habitantes da Ilha-sem-Deus, vida silenciosa e contínua como o fundo do mar, é ali que reside a verdadeira substância da sociedade humana. Não, propriamente, na sua miséria, e, sim, no seu enraizamento secular aos usos e vigências, na tradição, como asseverava o grande pensador basco.

Funda-se, para Unamuno, nessas existências sem voz, a verdadeira tradição, a tradição eterna. Não a tradição mentira, “essa que costumamos buscar no passado, enterrada em livros e papéis, monumentos e pedras.”

Parecia-me, esse postulado, uma grande exortação à resignação universal. Mas, o fato é que essa massa anônima e miserável subsiste impassível, pelos quatro cantos do planeta: desde a gelada Sibéria até os nossos rincões sertanejos; do ermo Sahel, na orla das estepes africanas, às modestas colônias de pescadores da costa brasileira. Todo dia, em algum lugar do orbe, um homem sem voz e sem face enfrenta a vicissitude da vida, com o estoicismo de um mártir desconhecido. Que força mitológica e tremenda o faz suportar o fardo dessa existência subterrânea e sem sentido?

Jorge Dantas ganha as ruelas da maré. Sai ao encontro dos intra-históricos. Ao pisar na areia das ruas do Pina, cheias de conchinhas brancas e seixos; ao sentir o sopro da brisa, a maresia, Jorge vai tomando consciência de sua própria situação. De fato, ele também tem emudecido diante das injustiças sociais e anda até um tanto ou quanto resignado com a sua própria circunstância. Nunca se rebela, nunca reclama. Tanta passividade aponta para uma condição tão submersa quanto a dos habitantes da maré.

Serei eu também um intra-histórico? Sopesava-se. Sim. A minha alma já, de há muito tempo, está mergulhada nesta lama. Martirizava-se.
Tão profundo parecia o seu mergulho, que deveria estar em uma categoria mais obscura e silenciosa do que os demais do povo.

Um conceito menos nobre do que aquel do mestre Unamuno se ia fixando em sua alma angustiada. Movido por uma profunda crise existencial, Jorge começava a se classificar na categoria dos infra-históricos. Um conceito mais vil, mais enlameado, que julgava ser mais adequado à sua condição. Sua responsabilidade era maior do que a dos homens simples da maré: ele era um escritor, um homem letrado, quase graduado em Filosofia. Essa condição tornava sua passividade diante da miséria e da fome, uma coisa covarde e inferior. Flagelava-se...




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