quinta-feira, 5 de agosto de 2010

LVI - CENTOPÉIA





...Com os remos levantados, a baiteira segue mansamente a correnteza do rio. Daqui, já se avistam, enfileirados à margem, os primeiros casebres da Ilha.

São pedrinhas de um dominó desencontrado que se escoram umas nas outras, buscando um equilíbrio sem prumo e sem esquadro.

O casario foi sendo construído, paulatinamente, ao longo de muitos anos, com retraços de madeira, zinco e plástico, maquete da universal e distorcida arquitetura dos guetos miseráveis. Um improvisado ancoradouro, erguido sobre caibros raquíticos, patas de uma estranha centopéia, avança pela lama da maré.

Esquivando-se por entre as patas enlameadas deste inseto surreal, meninos esquálidos enterram suas mãozinhas, pele e osso, na terra mole e escura. Buscam mariscos, pequenos crustáceos, caranguejos. A vida resiste em seu ciclo renitente! Por sobre as suas cabeças passa, num vôo rasante, um bando de pardais. Aves, meninos e crustáceos lutam pela sobrevivência em um mesmo habitat.

***

A voz do barqueiro vem me tirar dessas reflexões:

"Esse é um trecho muito raso e acidentado. A fábrica de rum lançou essas pedras nas margens. Os donos iriam construir uma espécie de dique. A fábrica foi fechada e as pedras ficaram assim, com a metade submersa. Ali, viram? Só podemos nos aproximar na maré alta e, mesmo assim, dando várias voltas, até encontramos o ponto ideal para a atracação. Barcos maiores nem se arriscam a chegar até a Ilha. Só se chega até lá nessas pequenas baiteiras."

***

Dando várias voltas, disse-nos o experiente barqueiro.
Essa singular forma de nos aproximarmos da Ilha, a paciência desses volteios, me trouxe à mente o que dizia Ortega y Gasset, em suas famosas Meditações do Quixote. Discorria ele sobre a melhor maneira de abordarmos, com a necessária (e pouco usual) profundidade, a obra prima de Cervantes:

“Essa obra genial tem que ser tomada como Jericó. Em amplos rodeios, nossos pensamentos e nossas emoções devem estreitá-la lentamente, sonorizando trombetas ideais.”

Também abordaremos essa Ilha-sem-Deus, voluteando sem pressa, sem urgência, em amplos círculos de atenção, traçados pelo pensamento. Não é essa, porventura, uma ilha labiríntica, nascida da cavilosa imaginação de algum engenhoso arquiteto, como aqueloutra, a mítica ilha de Teseu. Não é também cria dos sonhos dos homens, sendo mera efabulação?

***

De pé sobre as águas, ergo uma trombeta imaginária. O barqueiro deixa, sabiamente, que a correnteza do rio Pina conduza a nossa frágil embarcação...

Volvamos, pois, nossa atenção para o curso das águas. Delas, é algo para todos corrente, há de nascer essa história...





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