COM A UNHA do indicador ouso retirar de sua boca a ponta de seus cabelos enovelados. Atitude que revela uma intimidade de outros tempos. Ela se afasta. Já não há clima para uma linguagem táctil...
***
OIÇO ao longe uma trombeta. Lembra-me Shakespeare. Frases soltas, em inglês. Todas as vezes que me sinto rejeitada, lembro-me de Shakespeare, dizia-me Marília.
***
Back to barracks! he said sternly.
Ao quartel! disse ele, peremptório.
(um milico?)
***
CONCHA (codinome de uma velha amiga e militante) aconselhou-me a trabalhar esse meu script trágico. Não. Não sou, deveras, um anjo decaído. Embora tente inutilmente alçar vôo. Um vôo que, talvez, me curasse de todos os meus mistérios. Desses meus temores burgueses e decadentes, como diria Marília. Quem sabe, eu me tornasse mais compreensível às massas. Quem sabe eu conseguiria dizer essas mesmas coisas sem chorar...
***
TALVEZ os meus textos devessem ser mais contundentes, mais denotativos. E, por que não dizer, mais adultos. Há, por esses dias, certa urgência em esclarecer as coisas do mundo. Interferir na Polis. Fazer política. Tomar partido pela vida! Isso eu sei, Marília! Mas estou entravado na adolescência. Sou romântico por opção profunda. Não sei falar dessas coisas sem chorar. Saem lamurientos, os poemas? Solenes, como me alertou o Serpa Lopes? Tenho a visão embaciada pelo que faço de mim. Mas estou uno.
Choro simultaneamente pelos amores perdidos e pelos barracos cobertos de plástico da Ilha-sem-Deus.
Choro, coberto de plástico, saco-de-lixo, pelos amores frustrados.
E não sei separar, dentro de mim, a dor de avistar uma rosa murchosa, dessa outra dor que me traz a visão de um pivete ossudo, zonzo de cola-de-sapateiro.
Eu não sei ser mais de um, Marília.
Mas, tu és múltipla, tu és miríades, e és sempre tu. Como consegues?
***
OIÇO um canto gregoriano.
És tu que cantas.
Agora, um baticum de tambor de jongo.
Vem de ti, o ritmo, voz da negritude.
Há pouco ouvi uma trombeta shakespeareana.
Lá estavas tu, no sonido metálico da trompa.
Todos os sons em tua fricativa voz.
Todos os sonhos.
Todas as linguagens.
Como consegues?
***
LÍNGUA dos homens, língua dos anjos, címbalos sonoros? Nada disso importa, Jorge. Tenho amor.
DIZIA-ME isso enquanto enquadrava um mocambo em sua lente. Clic. Um maluco das ruas, vestido de trapos. Clic. O lixo na lama do Capibaribe. Clic. Um soldado espancando um grevista. Clic. Marília ama fotografando. Ama a Cidade pelas suas chagas. A barreira deslizou em Águas Compridas. Os detentos em rebelião na Casa de Detenção. Uma menina sem nome que foi assassinada, na praia do Pina...
ESSE trabalho só se faz amando, Jorge.
***
Á NOITE, limpávamos, pacientemente, a lama incrustada nas unhas do dedão do pé...
Levava para a cama um tabuleiro de xadrex e seu estojo de pedicure. Não consegui aprender o movimento das peças, minha rainha! Tive, no entanto, o mais delicado tratamento de unhas que alguém poderia ter.
Marília não mais exercia a profissão de podóloga, desde que entrou na clandestinidade. Só eu tinha a felicidade de ter tratado os meus pés, pelas suas mãos esguias e hábeis.
Lá fora, o mundo rugia, feito uma fera terrível. Os militares ocupavam os cargos de poder. A juventude fazia barricadas aos inimigos do amor.
Cá dentro, o amor...
Era disso que se tratava a nossa relação? Amor?
Marília chamava nosso sentimento de uma "amizade estranha que a desnorteava." Eu também estava sem norte. Sem oriente, melhor diria: desorientado.
Não era filiado a partidos e nem militava em movimentos. Era um anarquista moderado.
Que danado é isso? questionava-me, Marília. Não existe anarquismo moderado, Jorge!
Nem sei mais o que era naquele contexto. Um amigo, um amante... um camarada?
Marília mexia com destreza as peças no tabuleiro. Jogava contra um adversário invisível. Eu nunca aprendi a jogar. Nem na política, nem no amor, nem mesmo no jogo da sedução...
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OIÇO ao longe uma trombeta. Lembra-me Shakespeare. Frases soltas, em inglês. Todas as vezes que me sinto rejeitada, lembro-me de Shakespeare, dizia-me Marília.
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Back to barracks! he said sternly.
Ao quartel! disse ele, peremptório.
(um milico?)
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CONCHA (codinome de uma velha amiga e militante) aconselhou-me a trabalhar esse meu script trágico. Não. Não sou, deveras, um anjo decaído. Embora tente inutilmente alçar vôo. Um vôo que, talvez, me curasse de todos os meus mistérios. Desses meus temores burgueses e decadentes, como diria Marília. Quem sabe, eu me tornasse mais compreensível às massas. Quem sabe eu conseguiria dizer essas mesmas coisas sem chorar...
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TALVEZ os meus textos devessem ser mais contundentes, mais denotativos. E, por que não dizer, mais adultos. Há, por esses dias, certa urgência em esclarecer as coisas do mundo. Interferir na Polis. Fazer política. Tomar partido pela vida! Isso eu sei, Marília! Mas estou entravado na adolescência. Sou romântico por opção profunda. Não sei falar dessas coisas sem chorar. Saem lamurientos, os poemas? Solenes, como me alertou o Serpa Lopes? Tenho a visão embaciada pelo que faço de mim. Mas estou uno.
Choro simultaneamente pelos amores perdidos e pelos barracos cobertos de plástico da Ilha-sem-Deus.
Choro, coberto de plástico, saco-de-lixo, pelos amores frustrados.
E não sei separar, dentro de mim, a dor de avistar uma rosa murchosa, dessa outra dor que me traz a visão de um pivete ossudo, zonzo de cola-de-sapateiro.
Eu não sei ser mais de um, Marília.
Mas, tu és múltipla, tu és miríades, e és sempre tu. Como consegues?
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OIÇO um canto gregoriano.
És tu que cantas.
Agora, um baticum de tambor de jongo.
Vem de ti, o ritmo, voz da negritude.
Há pouco ouvi uma trombeta shakespeareana.
Lá estavas tu, no sonido metálico da trompa.
Todos os sons em tua fricativa voz.
Todos os sonhos.
Todas as linguagens.
Como consegues?
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LÍNGUA dos homens, língua dos anjos, címbalos sonoros? Nada disso importa, Jorge. Tenho amor.
DIZIA-ME isso enquanto enquadrava um mocambo em sua lente. Clic. Um maluco das ruas, vestido de trapos. Clic. O lixo na lama do Capibaribe. Clic. Um soldado espancando um grevista. Clic. Marília ama fotografando. Ama a Cidade pelas suas chagas. A barreira deslizou em Águas Compridas. Os detentos em rebelião na Casa de Detenção. Uma menina sem nome que foi assassinada, na praia do Pina...
ESSE trabalho só se faz amando, Jorge.
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Á NOITE, limpávamos, pacientemente, a lama incrustada nas unhas do dedão do pé...
* * *
Marília não mais exercia a profissão de podóloga, desde que entrou na clandestinidade. Só eu tinha a felicidade de ter tratado os meus pés, pelas suas mãos esguias e hábeis.
Lá fora, o mundo rugia, feito uma fera terrível. Os militares ocupavam os cargos de poder. A juventude fazia barricadas aos inimigos do amor.
Cá dentro, o amor...
Era disso que se tratava a nossa relação? Amor?
Marília chamava nosso sentimento de uma "amizade estranha que a desnorteava." Eu também estava sem norte. Sem oriente, melhor diria: desorientado.
Não era filiado a partidos e nem militava em movimentos. Era um anarquista moderado.
Que danado é isso? questionava-me, Marília. Não existe anarquismo moderado, Jorge!
Nem sei mais o que era naquele contexto. Um amigo, um amante... um camarada?
Marília mexia com destreza as peças no tabuleiro. Jogava contra um adversário invisível. Eu nunca aprendi a jogar. Nem na política, nem no amor, nem mesmo no jogo da sedução...
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