sábado, 31 de julho de 2010

XXIII - DOMINÓ

Depois de ouvir por tantos anos
O apito da fábrica,
Pendurar-se nos ônibus lotados,
Não perder o ponto, feito máquina;
Que faz agora o aposentado?

Trapo jogado nos subúrbios
A ver passar horas tão lentas,
Ai! Morte lenta...

Depois de anos de marmita,
De madrugar frios invernos,
De labutar sol e sereno,
Domingos no revezamento,
O que é de ti?

Foste enjeitado:
A pátria à qual serviste não te reconhece;
Os obesos patrões não lembram teu suor;
Condenaram-te a viver nessa desdita;
Sugaram teu vigor na mocidade.
Falavam com palavras tão bonitas:
Trabalho, Paz, Família e Liberdade.
Logrou-te a ilusão capitalista.
Hoje enfrentas uma velhice desonrosa,
Prisioneiro de uma pobre vida aflita...

Procura, em tua rua,
Uma árvore frondosa
Que te proteja deste sol na estrada,
E, à sua sombra, ajunta os camaradas;
Goza o que te resta dos anos de labor:
A cachaça
O baralho
O dominó
Nessa miséria, aposentado,
Infelizmente,
Não estás só...



Jorge Dantas
(Em memória dos valentes, Pedro Figueiredo, Manoel Pereira, e Honório. )



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►XXXIV

XXII- CÉLULA

♠ Leocádio já tinha avisado que eles viriam. Era o nosso homem infiltrado. Logo cedo queimamos os livros ata e centenas de panfletos. Alguns arribaram. Figueiredo fugiu pro Caiara. Elias Melo e seu sobrinho, Emerson, sumiram por uns dias.
De tarde, prenderam o camarada Honório, ele sim, um agitador, nem tanto pelo comunismo, mas defensor do Governador Miguel Arraes, de quem todos nós éramos eleitores.

♦ Ao cair do dia, retorna o pobre Honório, todo quebrado do pau de arara. Enfiou-se dentro de casa, tomado de pânico. Avisou que eles viriam a qualquer momento.

Eles vieram.
Eram quatro. Um oficial, um sargento e dois praças, um deles era o motorista.
Desceram da viatura verde-oliva. Um Jipe 58, que apelidavam de “bodinho americano”, herança da segunda guerra mundial. O oficial aproximou-se da porta da venda, em que funcionava uma Liga de Dominó. Foi então que, num repente, Seu Manoel Pereira, ex-combatente de Monte Castelo e patriota ferrenho, dono do estabelecimento onde funcionava a Liga, cobriu-se com a Bandeira Nacional e, de braços abertos, postou-se à porta principal e bradou, a plenos pulmões:

♣ – AQUI NINGUÉM ENTRA! NÓS TAMBÉM SOMOS BRASILEIROS!

♥ Marília me contava isso com orgulho. Dizia-me que aquela era a história feita pelo povo, pelos anônimos. O que hoje eu chamo de intra-história. E era mesmo. Quem sabe quantas façanhas como essa, aconteceram nos arrabaldes do Recife, nas vilas, nos engenhos distantes, nos sítios?

O povo humilde, a poeira, tentou defender o Governador Arraes, mas, a medo de canhões..., desistiu.



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►XXIII

XXI - DOPS

 Não sou apenas ambientalista. Se é isso que vocês querem saber, sou mesmo é comunista! berrava Marília em meio aos brutamontes da DOPS.

 Marília, tenha calma, por favor! pedia Jorge, já aflito com a situação.

 Pera aí, companheiro, se você tem medo, eu não tenho. Há mais de dez anos que sou tua amante, e você ainda não me conhece. É danado, mesmo! Vai tremer agora?...Eu não vou! Fodam-se!

 Anota aí escrivão: que a prisioneira declara ser adepta da nefanda ideologia comunista; que as fotos e imagens tomadas da região ribeirinha tinham a intenção de fazer propaganda contra o regime militar; que as reuniões na liga de dominó ocultavam uma célula do Partido Comunista. Abra-se um prontuário em nome de Marília Spencer; codinome de Mariana Rosa de Melo.

 Registre-se também a oitiva do Sr. Jorge Dantas Cabral de Lima, desempregado, estudante de Filosofia e poeta marginal; que nega ser filiado ao Partidão; que se comprometeu em publicar nota declarando não ser adepto do comunismo, em jornal de grande circulação no Estado de Pernambuco.

***

No mesmo dia me soltaram. Ela ficou presa.

Dizem que o Dr. Ferreira Lima, instruído pelo generoso Desembargador Aureliano, conseguiu soltá-la.
Nunca mais tive notícias. Parece que foi para o norte, Araguaia, aquele fim de mundo... Depois, Leste Europeu, Albânia, sei não.

Um cínico remorso me rói as entranhas. Não segurei a onda. Sabia que aquela confissão iria complicar a vida dela.
Sofro.
No entanto, eu não era, nem sou comunista. Nunca fui.
Participava, apenas, de uma inocente Liga de Dominó, onde desempregados e aposentados matavam o tempo e a si mesmos. Até que Marília trouxe o Leocádio. Ah!...Ela era mesmo uma militante muito corajosa.



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►XXII

XX – HOROLÓGIO QUARTZ

(Ouço os ruídos do Eska Quartz. Sua agulha vermelha diz tic num segundo e tac às vésperas do outro. As pretas – são duas, uma maior do que a outra – vão anunciando o lento nascimento-e-morte de uma estrela.
Tempo, Tempo, Tempo! Irremediável Tempo!
Atravessa a Rua Velha, lentamente, uma liteira, madeira trabalhada, verniz, negros suando, pesada e grave.

O Tempo (perdoe-me Einstein) é um rei absoluto. Reina sobre tudo e sobre todos. Déspota esclarecido: permite amores e dores; nele e por ele e apesar dele nascem as flores, murcham as flores; faz fenecer sóis distantes, faz renascer universos. O Tempo é uma face de Deus.
Vejo o brilho azulado e cintilante de uma estrela que já não está lá. Seu brilho ilude o tempo e finge que é permanente. Marília brilha como essa estrela que já não está lá. Bebo o seu brilho, mulher de sonho que ilude o tempo. Mulher-estrela, luz azulada, brilha no espaço, e o espaço é verso, tempo sem tempo.
Na Rua Nova, leio a manchete em um jornal:

EXPLODE NO AR O ÔNIBUS ESPACIAL.

Apesar de tudo o rei consulta o seu cortejo de estrelas. Todas estão cintilando. Mesmo as que já não brilham mais. E o Eska Quartz insiste em tic num segundo e tac às vésperas do outro.

...Sobrevivo azuladamente ao meu tempo...)



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►XXI

XIX – TAPU'RU

A maré espumeja em suas margens: baba o cão moribundo e implume. O vai-e-vem de suas águas fétidas embala o lixo dos homo faber: sacos e garrafas de plástico, latas vazias, pedaços de madeira, de isopor, zinco e papelão flutuam enganchados nos arbustos do manguezal. A Natureza devolve-nos de suas entranhas o que não pôde digerir. O lixo intragável retorna, assombroso cadáver insepulto, à lama ribeirinha. E, em sua linguagem de mortos, nos fala ameaçador:

Eis-me aqui! Sou o saldo de tuas conquistas sobre a Natureza. Resolve-me ou te devorarei.

Sentado à beira do rio, deste braço morto do Capibaribe que circunda a Ilha sem Deus, duas idéias me assaltam: poluição e finitude. Olhando o mundo pelos olhos sujos dessa maré agonizante, compreendo o profundo e terrível significado da palavra entropia. O rio de águas límpidas da infância dessa Cidade, aquele Capibaribe/Capiberibe dos banhos e alumbramentos, está morrendo. Suas águas apodrecidas nos anunciam a nossa própria destruição. Sim, somos seres entrópicos.

"Erguemos túmulos à beira dos rios e os batizamos: Cidades. "

Oh! Não penseis que temo a morte, a Definitiva, a Indesejada das gentes. Não me assusta esse espectro que paira sobre as águas desse rio. Não temo sequer os limites que a morte me impõe. Sim, sou mortal, finito, relativo. No entanto, descobri, nessas reflexões esferistas, que diversamente do lixo que bóia nas águas da maré, meu corpo, essa habitação provisória, é matéria biodegradável. Não sou um ser poluente.
Tal qual um ‘ser chardiniano’ de primeira natureza, serei absorvido com facilidade, como acontece com uma fruta apodrecida, com a lenha deixada ao relento, com as vagens secas da algaroba e com uma queixada abandonada na caatinga.
Descubro, de certo modo, gozoso e feliz, que sou um ser de fácil decomposição. Meu corpo se desmanchará no tempo, na terra, na umidade gostosa da terra. Possuo um ‘verme no âmago’, o tapu’ru dos tapuias. Abençôo, também, ‘o que primeiro roer as minhas vísceras’.




►XX


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XVIII - ITURRIONDO

(Unamuno, in Paz em la Guerra):




“Na monotonia de sua vida gozava Pedro Antonio da novidade de cada minuto, do deleite de fazer as mesmas coisas todos os dias e da plenitude de sua limitação. Perdia-se na sombra, passava inadvertido, desfrutando, dentro de sua epiderme, como o peixe na água, a íntima intensidade de uma vida de trabalho, obscura e silenciosa, na realidade de si mesmo e não na aparência dos demais. Fluía sua existência como corrente de rio manso, com rumor não ouvido e do qual não se daria conta até que se interrompesse.”




►XIX

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XI ◄ (sugestão de sequência)


XVII – ZOOM

...A correnteza do Rio Pina conduz lentamente a baiteira e impõe esse ritmo narrativo moroso e fluvial. Aponto a objetiva para as margens do rio. Passa por nós uma negra pescadora: um cesto cheio de crustáceos na cabeça e uma menina raquítica agarrada à sua mão. Passam à nossa frente: chape-chape na terra mole da margem do rio.


Zoom:
(Patas longas, desajeitados, os caranguejos engalfinham-se, disputando um exíguo espaço;
A água suja desce pelas tramas do cesto e lhe escorre pelas sobrancelhas..., nariz..., boca...
(Em slow motion, pela blusa, onde balançam belos seios volumosos, escorre a água e o suor...)


A mulher negra, impaciente, arrasta pela lama a pobre infanta. Tentemos aproximar o barco. Preciso de um melhor enquadramento.


Zoom:
(Mão calosa, unhas cheias de lama, aperta a franzina mão, sem pena, da menina...)

Encontrei um ângulo melhor. Pare os remos, por favor!

Zoom:
(Pernas finas, pequenina, a menina franzina anda, salta, corre, cai-não-cai, pelas tramas do texto, tentando seguir as passadas da mãe...)


Percebem a manobra da baiteira e, ligeiras, tomam uma linha perpendicular à margem. Logo alcançam o barranco de terra firme. Daí ao ancoradouro foi um salto. Depois, uma viela as encobre. Fogem da nossa vista como xiés assustados. Entocam-se.

Recolho o equipamento, tendo o cuidado de envolvê-lo em sua capa, para evitar os respingos da água fétida da maré.

Enquanto regressamos para a bacia do Pina, o velho barqueiro me alerta para os perigos da minha empreitada. O povo daqui é muito cismado, não quer graça com estranhos.

Sempre foi assim, penso eu.
Nas primeiras abordagens dos navegadores europeus em terras do Novo Mundo, os aborígines, desconfiados, corriam para a selva e ficavam espiando, escondidos entre as palmeiras, o desembarque daqueles estranhos visitantes.

...A baiteira passa vagarosamente em frente às palafitas. Olhos curiosos, nos mocambos, espreitam pelas frestas das paredes de tábua e zinco.



►XVIII


►alea índex


XLVIII◄

XVI – ÁPTERO







...Era um domingo sem asas. Marília insistia em fotografar os barracos da Ilha-sem-Deus. Trabalhava em uma grande reportagem para o tablóide “Uma Voz Socialista”. Era sempre assim, determinada. Pés no chão. Uma idéia e uma câmara fotográfica na mão. Não. Não eram apenas idéias. Eram convicções.
Eu preferia voar. Porém, estava áptero (tomei essa palavra emprestada ao Getsêmane Barros – áptero – bela palavra, quase flutua, mesmo sem asas.).
– Acorda, Jorge, chegamos!
Descemos do ônibus uma parada antes. Marília decidira atravessar, a pé, os 600 metros da velha ponte sobre o Rio Pina. Quase à metade do caminho, debruçados ao parapeito de ferro, contemplávamos o estuário. Marília jogava pelotas de papel nas águas dos rios. Permitia-se, por um momento, essa brincadeira, que entendia ser politicamente incorreta.
– Claro que não se deve poluir o rio, Jorge, zombava.
– Os rios, no plural, Marília! São vários. Nesse ponto se encontram o Tejipió, o Pina, o Jordão e um braço morto do Capibaribe que chega aqui contornando a Ilha do Retiro, o Coque e Afogados. Além desses, o Beberibe, que, depois de abraçar o Capibaribe por trás do Campo das Princesas, vindo pelo cais de Santa Rita, também chega a esse belo estuário. Todos eles juntos formam essa foz alargada que é conhecida, impropriamente, como Bacia do Pina...
– É verdade! Muito bonito esse encontro dos rios. É uma das belas vistas da Cidade. Mas, eu não sabia que o poeta Jorge Dantas era versado em Geografia...
– Gosto de estudar tudo o que diz respeito à minha cidade.

Alcançamos a Rua Herculano Bandeira. Céu nublado e mormaço. O dia quer se arrepender, avisa-me ela. Sentamos no Bar da Algaroba. Entre cervejas, Marília tece lentamente uma prosa persuasiva e quase inconsútil. Faz metafísica, faz graça. Constrói tratados poéticos. Questiona Deus e o sistema, entre goladas espumosas. Pequeninas folhas caem sobre nós. Sopra uma aragem vinda do mar. Seria melhor uma filmadora! Passaram alguns amigos e nos saudaram. Marília, absorta no discurso que ia construindo, quase não os percebeu. Parecia mesmo uma aranha urdindo uma teia sem costuras. Falava mansamente, voz fricativa, enquanto mordia a ponta dos cabelos...

 Até mesmo uma Super 8, já nos serviria...

Começa a cair uma chuva fininha, chuviscos, sobre o bairro do Pina.

***

A cidade também parece uma aranha. Uma teratológica aranha que emerge do Atlântico. E espalha seus tentáculos (ruas, rios) sobre os frágeis seres urbanos, pobres moscas, enredados na teia dessa metrópole nordestina.

***

Marília olha a cidade com certa ternura, mas se revolta. Questiona esse crescimento desordenado. Essa favelização de todos os seus bairros. Há favela em todo lugar. Até no Recife Antigo, bairro que se diz ‘revitalizado’, há a favela do Rato. Sob a Ponte do Limoeiro, há uma comunidade de pescadores, catadores de lixo, gente das ruas. Parece um bloco de apartamentos, sob a estrutura da ponte.

A cidade está sitiada, Jorge! Somos um Canudos às avessas. Os descendentes do Conselheiro vêm bater à nossa porta. Enquanto não for resolvido o problema da água no Sertão, do latifúndio, teremos sempre essas levas de flagelados, desembarcando em nossa cidade. Farei um levantamento detalhado, em preto e branco, das mazelas desse povo ribeirinho.

Jorge, faça-me uns textos contundentes, denunciando essa situação de miséria! Eu sou o cine-olho. Viva Dziga Vertov!

Enquanto fala, seu corpo pequenino estremece de indignação. Apalpará os tentáculos destruidores da aranha! Quer poemas sobre moscas, gente perebenta, camelôs, putas, pedintes, trombadinhas, meninos de rua! Abaixo o lirismo que não é libertador! Jorge, eis nossa bandeira!

Como pude resistir à voz de uma mulher assim, potente e iluminada? Como?

***

(Desço do ônibus, suado, agoniado. Ainda chove fino. Corro pro quarto e me tranco).

Rói-me um cínico remorso: pertenço à raça abjeta dos construtores dessa sociedade necrófila. Ah, se eu pudesse, minha amiga, traduzir a náusea desse instante. Poemas pejados de nojo! Manifestos exaltados contra o sistema, contra os opressores fardados!

(Escondo o rosto entre as mãos. Choro convulsivamente).

Marília desnuda, sem querer, meu imenso sentimento de culpa. Freudiana, lembra-me o Édipo, de Sófocles. O dono do Bar da Algaroba fez sinal que queria fechar.

Noite áptera no domingo sem asas. Ícaro volta a pé...



►XVII

XLI◄ (sugestão de leitura)

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XV- MESTRE JÖHAN LINZ

(inserir foto da fachada do Clube Franz Post)




Conheci o Clube Franz Post levado por uma ex-namorada de nome Marília Spencer, jornalista, militante política e repórter fotográfica; moça inteligente, sensível, radiante: uma personalidade solar. Era natural de São José do Belmonte, cidade das pedras encantadas. Por isso talvez tão cheia de fé na vida, tão forte e lutadora. Uma sertaneja de boa estirpe. Militava clandestinamente, engajada num desses pequenos partidos de esquerda. E foi por isso que me convidou para ouvir o velho professor de Belas-artes da Universidade Federal. Queria saber o que pensava o Mestre sobre o regime implantado no Brasil há quase uma década, pela extrema direita das Forças Armadas.

***

(INSERIR FOTO)

Marília, em seu exílio voluntário. ALBÂNIA, 1974.
(os cabelos negros perderam a cor, nesse disfarce )

***

A bem da verdade, fui até lá mais interessado nas belas pernas da moça do que na palestra. Não era muito afeito às questões políticas cotidianas. Eu era um poeta. Não, um militante. No entanto, ao ouvir ecoar naquele sobrado colonial do Poço da Panela, a voz pausada e suave do velho professor de Belas Artes...

***

...Era um discurso sereno, mas inovador, em que pontificava a idéia da Protopoesia. Essa idéia calou profundamente em minha alma. Suas palavras eram claras, luminosas, como as tintas de um outro holandês, trazido por Maurício de Nassau e cuja obra saturava de cor as paredes do imenso casarão.
Depois daquele dia, minha obra e tudo o que eu entendia de arte anteriormente, tomaria novo rumo. Eram novas palavras de uma nova concepção de mundo: Esferismo, Intra-história e essa Protopoesia, ou seja, a Poesia-em-si, enquanto fundação aórgica das matrizes míticas da realidade. O Mestre revisitava a pura revelação filosófica do dionisíaco Vicente Ferreira da Silva, brasileiro, nosso e quase anônimo filósofo.
Decerto eram idéias do começo do século XX. Em geral de pensadores ibéricos, que não estavam na moda, como os alemães. Lembrem-se que, nesse tempo, só se podia filosofar em alemão. Risível, isso. Mas era o que se dizia.
O Mestre, agora, ia buscar as idéias de um mundo translúcido, em que se podia ser plural, em plena época de maniqueus empedernidos, a esbravejar à esquerda e à direita, suas palavras de ordem.

"É preciso não ser uniprismatista. Girem o objeto e o vejam por todas as faces e ângulos... "

"Indico-vos, pois, jovens escritores dessa cidade-das-pedras-que-seguram-o-mar, o caminho embriagador da Protopoesia, da entrega amorosa às forças oníricas, à ondulação da vida, da geografia enquanto epifania numinosa dos deuses... "

***

Naquele dia, nasceria a mais frutífera amizade que eu teria em toda a minha vida. Os muitos dissabores que aquela moça posteriormente iria me trazer, seriam todos perdoados pela chance que me deu de conhecer aquele homem admirável. Jamais esquecerei do Prof. Dr. Jöhan Mauritius Linz, o pai do Esferismo. Verdadeiramente, uma grande alma!


►XVI

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►XXVI (link sugerido)

XIV - PÊNDULA

Na varanda oeste, a velha rede balança. Tenho a sensação de quem se deixa levar por um rio e também pelo sonho. Do poente, vem o remoto grito de um pássaro. Flutuamos, eu e a rede, no sonho. Interessante: nunca boiei. Nunca consegui me deixar levar pela correnteza das águas, como quem sonha. E isso é, de fato, uma falha de minha personalidade, o não-boiar.

***

As pêndulas horizontais são utilizadas no estudo das marés terrestres, desde 1831. Dizem que um astrônomo alemão descobriu esse instrumento acidentalmente. Balançava-se em uma rede na varanda do seu observatório, absorto em seus graves pensamentos geofísicos, quando uma intuição lhe veio à mente:

"Movimentos pendulares das marés. Ritmo. Fases da lua. É isso!"

***

A Terra e a Lua brincam de burrica.
Sobe uma, desce a outra, na gangorra celeste:

Para onde vai a água da maré quando some na vazante? Para o mar? Mas a água do mar também some?
Sei não, meu filho! Deve ir para a África distante. Para o outro lado da Terra.

***

Quando eu for gente grande quero estudar as estrelinhas! Os planetas, os mares da Lua... Deve ser muito bonito viajar de balão e ver a Terra balançando no espaço feito um pêndulo!





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►XV

XIII – PENCA

























Este não é um livro linear.
Uma narrativa em linha reta traria a preocupação de encadear fatos.
Não aqui.
O livro, o arcabouço da obra, isto é, essa penca de páginas encadernadas, nos permite artifícios gráficos que quebram a linearidade (não desejada por nós) do texto.
Repensando a página, o suporte da escritura, procuraremos explorar alguns dos recursos que ela nos oferece.

(N. do A.)


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XII - AUTÓPSIA ...

...de uma paixão



Sentaram-se frente a frente, dispostos a exorcizar os seus fantasmas. Jorge, angustiado, pediu uísque ao garçom. Uma dose dupla e um guaraná. Estavam em um bar quase deserto. Mas isso era um detalhe de somenos importância. Seus olhos marejados não enxergavam o entorno. O mundo se reduzia ao espaço entre eles. O garçom pede licença e discreto põe sobre a mesa a dose de uísque e o refrigerante. Um gole entra pela garganta seca. Outro gole. Das bocas surgem as palavras-farpas. Mágoas amargas. Dois fantasmas desolados se encaravam. Onde a sintonia dos primeiros dias de paixão? Jorge relembrava dos arrepios que atravessavam seus corpos nas primeiras semanas daquele setembro em que se descobriram amantes. Marília, calada, o olhava, entre aflita e exausta. Desencontros e desencantos afloravam todos de uma só vez.

Preciso ir embora, Jorge, não posso ficar muito tempo na cidade. Eles já me descobriram. Pedia, com voz embargada pelas lágrimas, que escorriam por trás dos óculos embaçados.

Foram pequenos instantes, longos e dolorosos. Admitir os próprios erros e aceitar as culpas, já é em si uma dor. Porém maior é a dor a dois. A dor desiludida e desgastada de um fim de caso.
Por que as mentes não mais captam o que dizem as palavras? Marília, perplexa, já não consegue se fazer entender. Jorge, agoniado, já não argumenta nada compreensível. As palavras já estão gastas e vazias de linguagem. Vocábulos vazios, fonemas átonos são ouvidos, nada mais.
O dono do bar, recostado ao balcão, esforça-se por ouvir o que dizem. As lágrimas dizem tudo, na paixão. A paixão intensifica o sentido da dor e da alegria. Quando se dá o ocaso de uma paixão, até mesmo a vida perde seu sentido. O dono do bar reflete sobre as dezenas de vezes em que viu cenas iguais àquela. Intrigado, pergunta-se por que os casais sempre resolvem chorar naquela mesa do canto.
Jorge e Marília renunciavam ao vínculo já desvanecido, por medo da dor. E dói muito, o medo de sentir dor. Jorge entornou o resto do uísque que havia no copo. Chegara a hora fatal. A conversa já não mais fazia sentido. Durara o tempo de tomar uma dose de uísque. Um amargo uísque de terceira.
Juntaram seus cacos de sonho desfeito e saíram do barzinho. A noite do Pina ostentava uma lua abusada e inconveniente. Um abraço e um beijo calaram suas vozes.

Seja feliz, Jorge. Depois te mando os teus discos do Chico.
Vou tentar, Marília ...

A noite do Pina estava em burburinho: prostitutas, poetas e marujos zanzavam, ébrios, pelas ruas da zona.
Jorge Dantas, atordoado, entra num táxi. As sombras da avenida o encobrem tristemente. Seria a vida uma aventura louca e sem sentido? Ou seja: valeria a pena seguir vivendo?


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►XIII

XI - VARINHA

OU

A RAZÃO VITAL E O ESFERISMO

Fragmento de oficina literária do Mestre Jöhan Linz - Grupão da Várzea, 1974
(sob os auspícios dos padres holandeses e sob os olhares vigilantes da censura)




(...) Num passo memorável de suas Meditações do Quixote, José Ortega y Gasset compara a razão com aquela varinha, usada para verificar a profundidade do leito de um rio que se pretende atravessar. Considerar a razão, assim, como um instrumento de verificação de profundidade, a transforma em algo tão próximo de nós quanto um dos cinco sentidos.
A razão, sustenta Ortega, é uma função vital da mesma linhagem que o ver e o apalpar. Por isso, talvez, nos aconselhava a “palpar com a pupila a pele das coisas.” Nessa frase a visão é quase um tato, mas esses dois sentidos, ao se fundirem numa mesma oração, revelam o que queria Ortega dizer, de fato: a compreensão da realidade é a questão de fundo, quando se percebe a Razão enquanto função vital. Para viver é preciso compreender, e isso implica em pensar, raciocinar. Não se pode então separar a vida da razão.
Penso com meus olhos minha boca, minhas mãos, penso com o meu corpo todo, dizia Álvaro de Campos, o poeta sensacionista. Ortega aduziria: penso com minha própria vida. Assim, palpo a realidade, as coisas, com os meus olhos, com a razão vital, com a minha vida.
Decerto, entender algo significa inseri-lo no contexto da minha própria vida. E, assim, observar como esse algo funcionaria nela. Chegamos à irremediável conclusão de que a vida é o próprio órgão da compreensão.
Neste ponto, podemos inserir a compreensão da obra esferista à luz da razão vital, se é que existe isso!

(Ouvem-se risos e aplausos na platéia embevecida. O Mestre pigarreia e prossegue):

(...)É ainda Ortega quem nos ilumina ao tentarmos esclarecer a proposta aberta da obra esferista, quando afirma:

“Não existem mais que partes na realidade;
o Todo é a abstração das partes e delas necessita.”


(Com maestria o velho professor Linz nos apresenta a amarração entre as partes e o todo, garantindo que essa coisa ilógica e com um nexo nada comum, chamada obra esferista, não é um produto de loucos extravagantes, é pura invenção, é arte):

(...) Desde que a platéia, aqui é, em sua maioria, composta por dramaturgos, cineastas e escritores, (como já me fizeram saber), pretendo dirigir-me, preferencialmente, aos jovens romancistas que desejam enveredar pelas corredeiras desse caudaloso rio esferista.
Trata-se aqui de compreender, orteguianamente, a obra no contexto da vida humana. Apesar de ser um esquema didático o que lhes vou apresentar abaixo, não esqueçam que a compreensão final da obra se dará no âmbito de uma vida: a do leitor. A ele compete a derradeira modulação do que criou na obra o autor esferista. É como se o leitor fosse o violinista solitário, a quem caberá executar as harmonias desencontradas de uma composição dodecafonica. Apresento-lhes, então, a varinha esquemática para a avaliação da profundidade do rio que terão de atravessar.

Pois bem:

O escritor esferista, tentará, à maneira dos cubistas, mutatis mutandis, urdir sua trama em planos (partes do todo) quadridimensionais: superfície, profundidade, perspectiva e ritmo. Não representa, mas apenas sugere a estrutura dos personagens, do ambiente e da ação, que chamaremos de objetos esféricos. Representa-os como se girasse em torno deles, como um cinegrafista eisensteiniano, vendo-os sob todos os ângulos visuais, por cima e por baixo, percebendo todos os planos e volumes.

Principais características da enarrativa esferista:
◊* geometrização das idéias;
§* multiplicidade de perspectivas;
۞* a linearidade capitular perde sua função;
۩* sensação de escritura atemporal;
♫* musicalidade da obra, com volteios no tema, como numa peça sinfônica.

O Esferismo tem duas modulações:

Esferismo Analítico – caracteriza-se pela fragmentação da obra em todos os seus elementos. Decompondo a obra em partes, o artista registra todos os seus elementos em tramas sucessivas e superpostas, buscando a visão total dos objetos esféricos, mostrando-a por todos os ângulos de um mesmo instante.

Esferismo Sintético - considera excessiva a fragmentação dos objetos esféricos que acarretava a quase destruição de sua estrutura, tornando as obras muito herméticas. Basicamente, essa tendência procurou tornar os elementos do texto esferista novamente reconhecíveis. Também chamado de esferismo matérico, porque introduz letras, palavras, imagens como artifícios gráficos e de referência, apropriações, paráfrases, e até obras inteiras, parodiadas em sua estrutura romanesca.

..Essa inovação pode ser explicada pela intenção do artista em criar efeitos ideoplásticos de intertextualidade para ultrapassar os limites das sensações visuais a que a página está restrita, despertando também no observador sensações sinestésicas, em um sentido lato dessa palavra(...)


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► XII

X – PACAIO

Tábua de Marés
Preamar # 02h21



...ACENDE um pacaio entre as mãos em concha. Baforadas breves e tragadas fundas, para não perder a chama boa. Essa insônia deve vir da Lua. Cheia, ela mexe com tudo na Terra. Com o sono dos homens e dos bichos, com o azougue das crianças, a regra das mulheres, as ressacas da maré.

Aqui não há não onça, nem boiúna, moço.
Boto? Não. Tem não. Tem peixe-boi, manso e bom.
O bicho perigoso daqui?
Escreva aí: Gente...
Amigo, gente é o bicho mais perigoso da maré.
Se algo reina encantado por aqui?
Anote: a nossa Mamãe Lua.
Outra coisa encantada? A ventania de agosto...

...Lá fora o vento assobia pelos desvãos dos mocambos. Levanta o lixo no pé das cercas. Açoita os frágeis telhados. Vai varrer a noite inteira, vassoura invisível. Friezinha boa, maresia. Acostumado ao cheirinho da maré. Bom de ficar ‘maginando, pitando um pacaio, pensando na vida’. Eita, ventinho bom! Deus nos acuda dos ventos de agosto. Mas esse... sopra mansinho,
Fazer o quê? A mulher vai ficar ouvindo o radinho a noite toda. Nesses dias ela fica enjoada. Enxaqueca. Tem mulher que nem liga. Ela, não. Nunca faz. Nunca. Deixa pra lá. Fazer o quê? É melhor ficar quieto. Esperar a mulher melhorar. Essa lua... Essa brisa... Dá vontade de desamarrar a baiteira e dar umas remadas pela madrugada. Poderia ir até o Buraco da Draga. Lá tem um bar flutuante que vende cachaça a noite toda. Deixa pra lá. Melhor, não. É melhor evitar de beber. Amanhã bem cedinho pegar no batente. Apanhar meus papéis e ajudar minha velha a criar esses netos.

Pedro, vem dormir não? resmungou a mulher.
Vou já! respondeu, soprando espirais de fumaça no ar.


►XI

►alea índex

III◄

IX - TRIPÉ

...O tripé que sustenta a Super-8 parece um louva-a-deus. Sua cabeça miúda aponta para o cais da Aurora:
O rio calça as botinas do lixo e da lama brotam pneus, flores inúteis. A vazante desnuda o Capibaribe. Jazem, nesse leito enegrecido, pequenas balsas e baiteiras, encalhadas feito capivaras moribundas. O velho rio, agônico, bebe o vômito que escorre pela boca das sarjetas.

Seres entrópicos é o que somos. Erguemos túmulos
às margens dos rios e os batizamos: Cidades.

Ajoelho-me sobre o pequeno inseto. Suas patas dobráveis inclinam-se sobre o cais. Sinto-me um lepidóptero. Minhas palavras, asas enlameadas. O rio escorre de minha boca, trompa espiralada, em sons inaudíveis, desce de minha alma, larva de tungstênio, cruza a Cidade, crisálida, casulos miseráveis, povo ribeirinho, mangue, o rio escorre de mim. Vem do mar e volta ao mar, dentro de mim: abissal é o eu-profundo. E o rio, este que aqui escorre esfereográfico, é o rio nascido de minhas entranhas. Seu nascedouro: um lago vulcânico em algum lugar de meu interior. Não é mais o rio que vejo (que via) sentado nas pedras do cais. Este é o rio sinuoso das minhas correntezas mais fundas. Sinuoso e enganador como as palavras que invento. Invento? Caminhando à margem (do rio?) ouço, quase mediunicamente, a voz, a fricativa voz da brisa recifense. Sussurra-me uma mensagem ultrafanica. O rio escorre hac hora da boca do Tempo: oiço vozes que não invento. Frases de vento. Inolvidáveis correntes que fluem de um rio invisível. Psicografo?
Foi em meados de 1972 que li A Queda, de Camus. Um livro agudo como uma adaga. Percorri com o Juiz um cais imaginário. Fitávamos, peripatéticos, aquelas águas turvas e agonizantes (do Sena ou do Reno?). Teço, hoje, esse cais de palavras. Pode haver uma relação distante e atravessada entre as águas do Capibaribe, que hoje escorrem enlutadas, e o monólogo do Juiz-penitente?
Do cais da Aurora o rio revisita, em sua língua morta, o cântico universal da dor humana. Rio perpétuo e surdo, as serras esboroas, / Serras e almas, ó Tempo! / e, em mudas cataratas. / As tuas horas vão mordendo, aluindo, à toa... / Todas ferem, passando: e a derradeira mata.
As águas poluídas da minha alma turva e impenitente amaldiçoam as cidades erguidas sobre a lama dos homens. Através dessa olho-de-peixe, os diques lodosos me chegam distorcidos, imagens baças, circulares. A vida me vem enviesada, distorcida, circular. A lama. O lixo. A lama. Tento revelá-la nessa fraseologia em preto-e-branco. O rio corre para o mar enlameado. Vejo um rosto lamacento no espelho que trago entre as mãos. As horas passam fluviais e atravessam essas páginas amareladas. Amarelentas, passam as horas. A maré, lenta, conta e reconta suas enchentes, sua vazantes. A maré lenta: um relógio lunar. Lembro de uma frase que costumava ser escrita nos mostradores dos relógios antigos: Vulnerant omnes, ultima necat... O rio, moribundo, aguarda a sua hora, a derradeira, agonizante. Abraçado ao louva-a-deus, recito Bilac: E bendita, que, sobre a minha cova aberta, / Pairas, última, ó tu que matas e libertas!


►X

►alea índex

▼LVI (a ser editado)

VIII- ILHA–SEM-DEUS




















Aquecer a frágil’alma
Ao calor desses destroços
Esses retraços que ardem
Em um ser baldio e sem crença

Esfregar mãos engelhadas
Ao fogo desse monturo
Prender a morte num engulho
Sem desistir da existência

Buscar sentido no caos
E fé na lenta agonia:
Esses barracos imundos.
Essas entranhas vazias.

Trapos, lama, palafitas
Sem Deus na ilha esquecida
E a vida?

A vida é também retraço
No pó das desconstruções.
Essa inútil empreitada.
Um traço desesperado
Que nós riscamos no Nada...



Jorge Dantas (poema sem data)



►alea índex


► LVII (NEXO EM CONSTRUÇÃO)


► IX

VII – CALIDOSCÓPIOS

Os “livros expandidos” ou textos calidoscópicos, ao modo de Rayuela ou Avalovara (na estrutura), ou de Os Jardins dos Caminhos que se Bifurcam (no conteúdo), talvez, só se tornem atraentes na medida em que surjam os primeiros autores igualmente expandidos. Esses autores vão fazer a gente navegar num texto em que cada palavra traga armadilhas que levem a outros mundos, de sons e imagens, com desdobramentos inimagináveis sobre uma folha de papel. Esse novo texto, promete ser uma forma de expressão mais próxima do passeio mental que percorremos quando pensamos, saltitando de uma idéia para outra sem os grampos rígidos da linearidade e da lógica das palavras e das frases.

.....................................(fragmento de leitura em uma revista literária)



► alea index



►LVIII (nexo em construção)

►VIII


Glossário virtual: hipertexto arcaico

VI - INTRA-HISTÓRICOS(2)




...ASSIM É PEDRO ANTONIO: sempre imerso em sua rotina. Cedo já está catando papelões deixados à porta dos trapiches do cais de Santa Rita. Pega um trapo velho, sob as marquises das lojas da Rua da Praia. Ou então, recolhe sobras de frutas e verduras, na porta principal do Mercado de São José. Aqui e acolá, perambulando, sem pressa e sem preguiça, cumpre o seu labor com a disciplina instintiva de uma formiga, de uma abelha operária. Em casa a prole espera o de comer. Imperiosa necessidade o conduz de lixeira em lixeira: a fome.

Pedro Antonio não lê, nem escreve. No entanto, conhece o nome de todas as ruas da cidade. Conhece-as pelos prédios, pela cara gorda e cínica dos gerentes de lojas, pelos rostos sofridos dos vendedores de sapatos. Na Rua do Rangel, ferragens e rações. Na Direita, aviamentos. Na das Águas Verdes, quinquilharias, miudezas e a famosa homeopatia do Dr. Sabino Pinho. Pode até ser um analfabeto de pai e mãe, como ele mesmo costuma dizer, mas tem fama de excelente conhecedor da língua das estrelas. Já explico: antes da velhice e da doença, foi mestre de barco da Colônia Z-1. Sabia ler o firmamento como poucos, e nunca se perdeu no mar. Nem no mar, nem na terra. Sua vida tinha prumo. Seu norte era o trabalho. Sua bússola, a necessidade. Seu estímulo, a fome. Não, a sua fome. Vivia para matar a fome dos netos. Largou tudo, depois da morte dos três filhos: os barcos, o mar alto, as estrelas. Deixou até de beber sua cachacinha, cujos excessos lhe deram muito dissabor. Precisava terminar de criar os netinhos. E entrou de cabeça nesse cotidiano de catador de lixo, rotina invariável, ao sol e à chuva, de todos os dias da semana.

Os filhos de Seu Pedro, dizia o povo, morreram por não ter a sua têmpera para suportar as dores e a miséria.
Um deles resolveu se calar. Enfiou-se no barraco e amofinou-se. Nada dizia. Não exprimia um gemido. Nem mesmo seu semblante se alterava por nada. Nada em seu ser que demonstrasse alguma comunicação com o mundo. Dizem que viu algo no alto mar, numa viagem que fez com o pai. Nessas navegações com pequenos barcos pesqueiros, que duram dez, às vezes, quinze dias, os pescadores exageram no consumo da cachaça e da maconha. Esse era o filho mais velho de Pedro Antonio, de nome Jasão, andava aí pelos trinta anos. Numa dessas viagens, ingeriu as duas drogas: fumou a canabis e bebeu cachaça, em grande quantidade. Começou a ter alucinações. Dizia ter visto uma Sereia, ou a Mãe d’água, que, nua e sorridente, oferecia-lhe os braços. Louco, tentou atirar-se ao mar. Impediram-no, os outros pescadores. Passou o resto da viagem amarrado com cordas grossas na cabine do barco, febril e delirante. Ao regressar, trancou-se no barraco e nunca mais disse uma palavra. Encontraram-no morto, os olhos esbugalhados, como se tivesse visto uma assombração. Dizem, até hoje, que Iemanjá, a Rainha do mar, levou o seu espírito para o fundo das águas. Os mais entendidos diziam que aquilo era apenas o resultado do delirius tremens. Os jocosos de plantão, e os pinguços na porta das bodegas, refutavam, dizendo que ele apenas tinha visto o boitatá, entidade fantástica que persegue os alcoólatras. Jasão deixou uma jovem viúva, que sumiu no mundo, largando os três filhos do casal aos cuidados dos avós.

Jethro, o filho do meio, enfiou-se no álcool depois de uma desilusão amorosa. Diz o povo da maré que, não se sabe por qual Galega da Zona ele se apaixonou, que virou a cabeça do pobre rapaz, a tal ponto que ele deixou Dona Marina, sua mulher, e se foi atrás da rapariga. Corneado pela Galega, que não queria deixar a vida fácil, entristeceu-se. Não quis mais pescar. Não queria nem ouvir falar de mar ou pescaria. E todos sabem que isso aborrece Dona Iemanjá. Ela tem ciúme dos pescadores. Foi por isso que Jethro, sem trabalho em terra, começou a zanzar pela Ilha sem Deus, de barraca em barraca. Foi gostando da vadiagem e da cachaça, tanto e tanto, que já nem lembrava da tal paixão, que o havia trocado por outro. Enfiou-se de vez na aguardente, e poucos anos depois, acometido de complicações hepáticas e de uma fraqueza extrema, desnutrido que estava, entrou em coma alcoólico e morreu. Pedro Antonio quase morre também, de tristeza.

Mas, pelo que se conta, Josué, o filho mais novo do infeliz Pedro Antonio, teve um fim muitas vezes pior. Vivia pelas ruas, agarrado a uma garrafinha de cola. Quase não aparecia em casa. Meteu-se a roubar. Fez pequenos furtos e outras pequenas incursões pelo tráfico de drogas. Foi encontrado morto na maré, crivado de balas. Também deixou um filho recém-nascido, e sua mulher, ainda menor de idade, viciada e andarilha das ruas, que Pedro também se via na obrigação de alimentar.

Apesar de todas essas pequenas tragédias, Seu Pedro sai invariavelmente às quatro horas da manhã, ainda o mundo escuro, para seu ritual de catador de papéis. O povo pobre dos casebres se admirava: Se os filhos puxassem ao pai estariam todos vivos, ó xente! Não se sabe a quem puxaram, aqueles meninos. Não foi à mãe, Dona Maria do Ôio Azul, que também é uma batalhadora do marisco e do caranguejo. Ôxe, onde já se viu isso?




►VII


►alea índex

► XVIII (sugestão de nexo)

V - RIZOPHORA MANGLE

OU DA LAMA AO CAIS
(uma, ainda genesíaca, apropriação)



“Toda esta vasta planície inundável formada de ilhas, penínsulas, alagados e paús (sic), fora, em tempos idos uma grande fossa, uma baía em semicírculo, cercada por uma cinta de colinas. Nela vindo a desaguar, através da muralha dessas colinas, dois grandes rios — o Capibaribe e o Beberibe — foram entulhando a fossa com materiais aluvionais; com a terra arrancada de outras áreas distantes e trazida na enxurrada de suas águas. Pouco a pouco, foram surgindo, dentro da baía marinha, pequenas coroas lodosas, formadas através da precipitação e deposição dos materiais trazidos pelos rios.
E foi sobre estes bancos de solo ainda mal consolidado, mistura incerta de água e terra, que se apressaram a proliferar os mangues – estranha vegetação capaz de viver dentro da água salgada, numa terra frouxa, constantemente alagada. Agarrando-se com unhas e dentes a este solo para sobreviver, através de um sistema de raízes que são como garras fincadas profundamente no lodo e amparando-se umas nas outras, para resistirem ao ímpeto das correntezas da maré e ao sopro forte dos ventos alíseos que arrepiam sua cabeleira verde, os mangues foram pouco a pouco entrelaçando suas raízes e seus braços numa amorosa promiscuidade, e foram, assim, consolidando a sua vida e a vida do solo frouxo das coroas de lodo, donde brotaram.
Com os depósitos aluvionais que se foram acumulando na trama do labirinto de raízes dos mangues e debaixo das suas copadas sombras verdes, foi progressivamente subindo o nível do solo, e alargando sua área sob a proteção desse engradado vegetal. Não há, pois, a menor dúvida, que toda esta terra que hoje flutua à flor das águas, na baía entulhada do Recife, foi criação dos mangues.
Os mangues vieram com os rios, e com os materiais por estes trazidos foram os mangues laboriosamente construindo seu próprio solo, batendo-se em luta constante contra o mar. Vieram como se fossem tropas de ocupação, e, ao contato com o mar, edificaram, silenciosa e progressivamente, esta imensa baixada aluvional, hoje cortada por inúmeros braços d’água dos rios e densamente povoada de homens e caranguejos, seus habitantes e adoradores.
Tendo os mangues realizado esta obra ciclópica, não admiro que, hoje, sejam eles divinizados pelos habitantes desta área, embora não saibam os homens explicar como o mangue realiza este milagre de criar terra como se fosse um deus. Mas eles vêem até hoje crescerem ante seus olhos as coroas lodosas e transformarem-se, pela força construtora dos mangues, em ilhas verdejantes, fervilhantes de vida. E vêem, assombrados, proliferarem em torno das ilhas maiores, outras pequeninas, como saídas durante a noite de seu ventre, em misterioso parto da terra que o mangue milagrosamente ajuda.”


..................................................................................................(Josué de Castro)




►alea índex
► VI

IV - MITOPOESE I

O UNICÓRNIO




...Jaz a Noite Imensa sobre o mangue...

A cidade surge antes,
das enchentes, das vazantes,
fundação amorfa, sem face, vazia...

A cidade emerge, ser eqüestre,
alça as patas, veste a ventania,
galopa vadia, égua numinosa.

A cidade avança,
besta airosa,
e aponta para o Atlântico o seu chifre calcário.

A cidade é vária:
puta dos batavos, luta de mascates, corsáriomaquia.
Múltipla, mistério:
vila pescadora com matrizes míticas;
titãs com tarrafas, jêjes argonautas,
ninfas pomba-gira, reis iorubás.

A cidade é anfíbia:
ilhas de enxurradas,
sertões arribados sobre palafitas.

(ouve-se o relincho de uma gente aflita...)

Antes, muito antes,
a cidade dá cria (protopoesia?)
sobre os arrecifes que detém o mar.

Vaza a noite um imenso alfanje;
ouve-se o vagido e o sangue
lava as Pedras do Reino da Manhã

(ouve-se um trotar...)



►alea índex

► V

III – DOS ANTÍPODAS





Quando o grande escritor Koyo Ozaki pegava a pena e sentava à mesa, não negligenciava uma frase sequer, revendo e aperfeiçoando o texto inúmeras vezes. Ele se trancava no seu escritório que ficava na parte sul de sua casa em Yokoderacho, em Ushigome, e elaborava as suas idéias. Quando não lhe vinham boas idéias facilmente, tinha o costume de morder a articulação do dedo médio da mão esquerda; tanto que a junta daquele dedo acabou ficando grossa e deformada. Um manuscrito era rasurado várias vezes. Sobre as rasuras ele colava papel e tornava a reescrever a idéia, escolhendo as letras adequadas. Por isso o seu manuscrito perdia praticamente a aparência de texto, tornando trabalhosa a composição gráfica.

Jinsei Wo Suru,
MASAHARU TANIGUCHI, Ph. D., 1948.






(...) no escritório da José Olympio, em São Paulo. Caiu-me sob os olhos, casualmente, uma página de não sei que original de mestre Freyre. Nada menos cartesiano, senhores e senhoras. Nenhuma realidade “menos exata” (...) Direi mesmo: algo de assustar à primeira vista. Aquela página era uma peça compósita, onde havia de tudo – linhas à máquina, anotações manuscritas, emendas, superposições, retalhos de jornais e revistas, uma mixórdia de elementos visualmente heterogêneos, produzindo em conjunto o efeito de uma colagem anárquica. Não, aquilo não era uma página regularmente dactiloscrita, ou manuscrita. Não lembrava nem de longe aquele objeto de análise consagrado pela crítica literária com o nome insípido e inodoro de “texto’. Aquilo era um produto tanto cerebral quanto manual, uma peça de artesanato montada ao sabor das associações errantes, plasmada por quem gosta de palpar as idéias, acariciar os conceitos e as imagens, como se fossem coisas vivas. (...) Gilberto, ao escrever, não visa obter (...) a página assepticamente grafada, e, sim deleitar-se com a ocupação de escrever, que ele transforma num jogo de armar parecido com os que divertem as crianças.Por isso ele volta a reelaborar a mesma página, acrescentando-lhe novos elementos ideais, ao mesmo tempo que enriquece seu aspecto visual, com a mesma fantasia lúdica do artista plástico popular. (...)”

(Texto de intervenção do debatedor G. M. Kujawski, em Simpósio Internacional sobre Gilberto Freyre, UnB, 1980)



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► IV

II – RIO TEJIPIÓ

Ou primeira meditação sobre a impermanência das coisas

“Assim, o rio-vida, ou, o rio da vida é simultaneamente belo e fugidio
E impossível de agarrar ou deter, dado o seu permanente fluir.
É uma estrutura aberta, uma proposta aberta.”

...........................Ana Hatherly, poeta e ensaísta portuguesa





Perambulava, sem rumo,
por entre os coqueiros da Ilha das Cabras,
uma das três ilhotas do antigo arrabalde de André Luiz Pina,
quando me vi no fundo de um quintal arborizado.
Assentando-me sob um frondoso pé de fruta-pão,
testemunhei a passagem das horas lentas de um rio.
Assemelhava-se ao Rio Tejipió.
Não, esse, que passa entupido de lixo, apodrecido;
o rio que eu via, o que vejo, é o cristalino e fugaz rio da minha infância.
Abracei o transitório e franzino menino que havia em mim.
Ele não me esperava e não me reconheceu, mas, eu...
Ah, eu o reconheço sempre...

***

Tomei-lhe as mãos e descemos as ribanceiras.
Então nos fomos embrenhandos mata a dentro.
Cruzamos o vale do Sobe e Desce,
até depararmos com as margens daquele córrego-sombrio-entre-castanholas.
Era um dos irmãos menores,
fétido afluente do rio Tejipió,
escoadouro das águas insalubres do Sanatório do Sancho.
Mais abaixo, em uma ravina, passavam os trilhos da Rede Ferroviária Federal.
Eu vi a Maria Fumaça,
rumando pra Jaboatão,
ou o trem de Itabaiana,
fumegando e resfolegando, com estrepitosos piuís-tatatás.

***

Era ali perto que ficava a casa antiga de meus avós.
Aos sábados fazíamos uma caminhada vespertina.
Doze netos, mais um magote de adultos, curiosos por ver a nova invenção:
o aparelho de TV em preto e branco.
A suave lembrança de minha avó vem num cheiro de sopa quentinha,
nas tardes remotas daqueles sábados.
A de meu avô vem com livros e traz o sabor das balas Recheadas da Renda & Priori.
Antes do banho, um delicioso licor de jenipapo esquentava o sangue.


– Vó, minha sopa é com pão picado dentro, visse? E farinha!
– Farinha na sopa? Onde já se viu isso?


Depois do jantar, os doze netinhos sentarão na calçada da Rua 15 de Novembro,
e aguardarão, ansiosos, a passagem da tal Maria Fumaça.
“Essa é a composição que vai para Itabaiana”, dizia o vovô, sempre sabichão.


Cadê a roldana do quintal?
Fechamos o cacimbão, já não há mais corda e caneca.
Agora temos essa moderna bomba manual.
Meu pai bombeava "de com força", a gente em baixo,
e o jorro d’água molhou nossas almas com alegria e fugacidade.
Antes era o poço.
O olho do poço.
O rangido exupèryano da corda enroscando-se, cobra molhada, na roldana, serpeante.
Ou desenroscando-se, ligeira, vruuummm!, tibungando no fundo do poço.


A bomba e a roldana; tudo agora mudou-se aqui pra dentro.
Minha alma agora é feita dessa líquida recordação,
que às vezes escapa dos olhos, lágrimas fundas de água do poço de mim.
Vozes antigas, risos no caminho de Tejipió,
a fumaça do trem que já passou, sumiu na curva do pontilhão,
escondeu-se ali, na estação Coqueiral.


Tenho páginas amareladas de livros antigos, saudade,
e minha alma, as costuras aparecendo nas lombadas, sou avô de mim mesmo.
Sou uma colcha de retalhos miúdos,
pacientemente costurada por mãos hábeis;
sou vovó, todas as tardes, as agulhas transpassaram-me, passaram...
Eu sou esse ajuntamento de retalhos costurados por dentro.
E isso que escrevo agora e que escreverei,
são as minhas costuras aparecendo, e um livro velho rasgado no lombo.
O avesso surge dessas páginas, feitas do tecido que não reneguei de meu passado.







Ler hoje essas notas confusas, esses apontamentos sem data, é, para mim que os escrevo, que escrevi, que os escrevivi, uma estranha regressão de memórias da vida passada. Dá-me a mesma vertigem, a mesma comoção que sentia ao olhar o fundo do poço, no olho escuro do poço. Foi ali que aprendi a mergulhar em mim, em meu eu mais profundo e sombrio, em meu poço lodoso, nesse meu escuro cacimbão...


O poço..., sim, havia o poço. No oitão da casa de meus avós havia uma cacimba, um cacimbão. Paredes lodosas e frias. Pequenos cogumelos brotavam, frágeis e amarelos, contra o verde lodoso. Um balde de estanho, preso a um moitão, tibungava na água ensombreada, a meu comando. Ouço ainda o ranger bucólico daquela corda enroscando-se na roldana. As horas se passavam pachorrentamente, enquanto eu, debruçado à mureta do cacimbão, olhava, absorto, o espelho d’água. Piavam as bem-te-vis, nas árvores mais altas do quintal. Assim descobri Jorge D'antas, esse eu, quase eu, mais que eu. Ele olhava com estranha fixação a cacimba, funda e misteriosa. O poço tinha um olhar de abismo e no seu olho via-se outro mundo. Assim encontrei Jorge, olhava o poço, o fundo de si mesmo, o espelho do poço, ele, profundo, a roldana, o rangido, bem-te-vis que piavam insistentemente, vendo bem, não se sabe bem o quê, nas copas dos oitizeiros, das mangueiras. Jorge era uma voz bem no olho do poço, essa voz, esse poço que trago da infância, a porteira, o portal de outro mundo, o quintal suburbano, a saudade na água de um poço perene, eu, por dentro, minhas paredes lodosas, onde brotam, frágeis, pequeninos, cogumelos saudosos. Range a corda e a roldana, ouço a voz, tão querida, a voz, os avós; minha voz que ainda ecoa, neste poço, cá, acolá, outrora e agora...

***

Os ruídos da tarde me entram pela janela entreaberta.

Revejo a pitombeira raquítica.
*
Uma criança chora em meu olvido...
*
Em meu ouvido, um galo canta preguiçoso.
*
Óxente! Frases soltas me escapam sem os grampos rígidos da linearidade...
*
Os cabelos do tempo em desalinho...
*
Fujo da lógica compulsiva desses discursos-sem-ventania.
*
Anotações indisciplinadas e assistemáticas.
*
Apontamentos da enxurrada.
*
Produtos de uma ordem interior que é aparentemente caótica.
*
A fruta de uma intensa auto-observação.

***

Marília atravessa a praça arborizada em uma bicicleta bela e azul.
Todos os raios buscam o vazio do eixo central.
O Tao. O Vazio. Marília, transcendental, no cinema: filmes em cinemascope de cristal.
E minha avó (ou era minha mãe) me chamando da porta da cozinha.
Um cheiro de manga-espada, um gosto de fruta-pão.
Lá nos fundos, sempre o poço.
Esse poço que me olha com um olho de sedução:

***

Zoom:

A escada do sótão também é helicoidal. Espiralada lembrança. Rua Leão Coroado, 20. Insubmissas lembranças que não se fazem palavras: só cheiros, cortes na pele, ruídos, fundos silêncios, cores alvas dentifrícias, saudades sem face, fantasmas que se engavetam junto com meus manuscritos amarelados.







Minha alma é helicoidal como essa escada do sótão; meu corpo, um velho sobrado que insiste em ficar de pé.

(Só bem depois, já maduro, eu conseguiria percorrer a escura escada espiral dessa torre joyceana:

 Suba, Jorge. Suba, poeta execrável!
 Mestre Linz, eu preciso aprender a pintar aquarelas...

***

A propósito de aquarelas, o Mestre me alertava de que o gesto de pintar, a pincelada, deveria ser repetido milhares de vezes no ar, sem tintas ou pincel, isso antes de se iniciar, efetivamente, a pintura. Esse exercício faria com que o traço surgisse perfeito ou próximo da perfeição.


 Ah, Mestre..., os automatismos não servem apenas à arte pictórica. Estão nas coisas mais comuns. O gesto trivial de lançar um balde no fundo de um cacimbão, tantas vezes repetido, logo se tornará maquinal, automático, instintivo. Alguns gestos, de tão repetidos, nos surpreendem ao nos vermos fazê-los, com em dèjá vu.


Abanar o fogareiro, as brasas estalando como estrelas na noite fria.
Acender, com as mãos em concha, o mesmo cigarro de palha.
Saudar passantes conhecidos com o chapéu.
Levar à boca uma ancestral broa de milho.

Instintivas tradições, trejeitos, mesuras ritualísticas, litúrgicos meneios de cabeça. Nãos e sins, essas falas do corpo, mil vezes repetidas, que já não percebemos ao dizê-las. Cristalizações intra-históricas...

Ontem enfiei a mão esquerda (ou foi a direita?) na lama escura da maré, a perseguir um pequeno crustáceo esbranquiçado, um sarará.

***

...um telefone toca, quase inaudível, dentro dessas minhas evocações. É Concha, na clandestinidade. Digo alô, distraído. “Alô, Jorge, preciso falar contigo, pessoalmente.”

***

São 11h e 55m, o cais está apinhado e me chega o alarido de entidades feitas de verbo. Forro a mesa (toalha de estampas multicores) na presença desses seres invisíveis. Famintos, esses passageiros são arrastados de mim por coletivos ruidosos e fumarentos. O sol esquenta as águas do Capiberibe, do Beberibe, e de todos os outros rios que atravessam o meu prato de feijão com arroz. Sento-me à mesa com os passantes, que me espiam olhos de espanto. Encho o cálice, transbordo.

– O que deve estar se passando com minha amiga? Concha não me ligaria sem um motivo... Deve ser algo sério: ela gaguejava.

***

(A ex-mulher levou a primogênita ao dentista.) O mais novo espalha seus brinquedos pelo chão da sala. Estou pajem. Do vizinho, um gavião estridente, garras afiadas, sons do futebol: o sinal do tempo marca! Avisa-me o rádio que é meio-dia na capital pernambucana. Sinto-me exausto e entediado.

***

Mariana (ou Marília, como queiram) cita Memei: “não te doa a obrigação de repetir, vezes e vezes, esse ou aquele esforço que consideras de sacrifício.”

Entre garfadas, eu medito.

“Se já te aceitas na condição de criatura imperecível, reflete no tempo gasto pela Sabedoria da Vida nas criações da Natureza.”

***

No entanto, os ruídos em meu estômago lembram-me o peso de existir. Espanto-me com os movimentos involuntários das minhas entranhas. Eu sou essas vísceras que se espantam.

***

(Há um vaso, branca porcelana, flores vermelhas de crochê. Automóveis enfileirados, enfileirados brinquedos que o filho mais novo não guardou).
Natureza-morta?
De que adianta perquirir o enigma das coisas, vaso, flores, brinquedos? As coisas existem apesar de minha ignorância do sentido que nelas possa haver. Estranha e tola essa minha mania de compreensão. Mariana/Marília dizia ser a minha fascinação pelo Todo. Deixemos então o crochê vermelho das flores, o vaso branco. Respeitemos a desordem do mundo espalhada nos carrinhos-de-plástico de meu filho. Por certo há bastante metafísica em não pensar. Aceitemos, pois, submissos (ai, vergonhosa resignação) a ordem caótica do que já é. Preciso me lembrar que houve um tempo em que eu nem estava aqui. Entretanto, como negar a necessidade (ou a necedade) de traduzir o meu espanto diante do patente. Dizer as coisas que ora me atravessam é vital para mim. Imperiosamente vital. Mesmo que as palavras fujam,  lebres assustadas com o barulho que faço ao existir,  tento expressar-me. Apesar de impossível a Palavra, exata tradução do que digo dentro de mim, arrisco-me ao dorido/lúdico esforço de falar.
E falo... Falo? Eis aqui uma palavra traiçoeira como o áspide.
Canto. Soa melhor.
Minha Língua, faca amolada, canta cortante e me corta.

***

(Há um vaso branco sobre a mesa avermelhada flor de crochê carros brincando na desordem do filho que não guardou natureza morta?)


►III




►alea índex





►VII (sugestão de nexo)


I – MADRÉPORAS

Jean-Paul Sartre (em uma amarelada ficha de leitura):“O que significa a literatura, num mundo que sofre fome? Como a Moral, a Literatura necessita ser universal. O escritor deve, pois, se colocar do lado da grande maioria — dois bilhões de famintos — se quiser dirigir-se a todos e ser lido por todos.”



...Jorge Dantas está sentado em sua velha cadeira giratória. Olhos distantes. Aparentam tristeza. Da varanda  de seu kitchenette, contempla o anfíbio bairro do Pina. O areal...,  a maré...,  a Ilha-sem-Deus.

Desempregado, ocupa-se com a ordem possível para a pequena biblioteca improvisada, num recanto. A pequenina Olivetti Lettera, adquirida com a indenização trabalhista, descansa na bancada, também improvisada sobre cavaletes. Jorge agora vive do improviso. Tenta remir o tempo: organizar a vida, os papéis, as amareladas fichas de leitura.

Acaba de trancar o curso de Filosofia. Os tempos andam difíceis. Crises conjugais, financeiras..., existenciais. Reabsorver a circunstância, diria Ortega, esse é o destino concreto do homem. Mas, como saber a que se ater ante os inumeráveis problemas da vida humana?

Olha pelo janelão que dá para o poente. Vê, por cima do telhado das casas vizinhas, a miserável Ilha-sem-Deus:

Como compreender o que faz aquela gente aceitar assim, tão resignadamente, sua miserável circunstância? Uma resignação, aparentemente, estóica e orgulhosa de si mesma. Orgulho de mártires! Quase épico!
Mas... será mesmo assim que eles se sentem?

Talvez nem tenham plena consciência disso, imersos que estão na sua miserabilidade. Vivem como madréporas, esses minúsculos animais submarinhos que sustentam os recifes de coral, numa vida vegetal e submersa. Têm a alma mergulhada na lama. Jorge recita Miguel de Unamuno:

“Os jornais nada mencionam da vida silenciosa dos milhões de homens sem história que, a todas as horas do dia e em todos os países do globo, se levantam a uma ordem do sol e vão a seus campos, prosseguindo no obscuro e silencioso labor cotidiano e eterno...”

No rádio, a voz nasal e sincopada de Jackson do Pandeiro canta:

“caranguejo uçá,
caranguejo uçá,
apanho ele na lama
e boto no meu caçuá...”

Qualquer hora dessas vou botar meu chapéu de palha e dar uma volta entre os pescadores, jogar conversa fora, espairecer. Observar o paciente labor dos consertadores de redes de pesca; misturar-me a esses anônimos moradores da maré, subempregados, sem nenhuma assistência do Estado, que, apesar das agruras, vão tocando a vida como podem, nesses barracos fincados na lama do mangue. Alheios ao contexto e à história, resignam-se, estranhamente, nesse labor unamuniano:

“...Esse labor que como o das madréporas suboceanicas, deita as bases sobre as quais se levantam as ilhotas da História.”

Jorge guarda os papéis, decidido, por fim, a sair. Os conceitos de Unamuno fincam-se em sua alma como as raízes do mangue na lama...

...Só compreendendo o conceito de intra-história é que podemos aprofundar nossa familiaridade com esses seres sem face que nos cercam. Pois é nessa vida intra-histórica, como a dos habitantes da Ilha-sem-Deus, vida silenciosa e contínua como o fundo do mar, é ali que reside a verdadeira substância da sociedade humana. Não, propriamente, na sua miséria, e, sim, no seu enraizamento secular aos usos e vigências, na tradição, como asseverava o grande pensador basco.

Funda-se, para Unamuno, nessas existências sem voz, a verdadeira tradição, a tradição eterna. Não a tradição mentira, “essa que costumamos buscar no passado, enterrada em livros e papéis, monumentos e pedras.”

Parecia-me, esse postulado, uma grande exortação à resignação universal. Mas, o fato é que essa massa anônima e miserável subsiste impassível, pelos quatro cantos do planeta: desde a gelada Sibéria até os nossos rincões sertanejos; do ermo Sahel, na orla das estepes africanas, às modestas colônias de pescadores da costa brasileira. Todo dia, em algum lugar do orbe, um homem sem voz e sem face enfrenta a vicissitude da vida, com o estoicismo de um mártir desconhecido. Que força mitológica e tremenda o faz suportar o fardo dessa existência subterrânea e sem sentido?

Jorge Dantas ganha as ruelas da maré. Sai ao encontro dos intra-históricos. Ao pisar na areia das ruas do Pina, cheias de conchinhas brancas e seixos; ao sentir o sopro da brisa, a maresia, Jorge vai tomando consciência de sua própria situação. De fato, ele também tem emudecido diante das injustiças sociais e anda até um tanto ou quanto resignado com a sua própria circunstância. Nunca se rebela, nunca reclama. Tanta passividade aponta para uma condição tão submersa quanto a dos habitantes da maré.

Serei eu também um intra-histórico? Sopesava-se. Sim. A minha alma já, de há muito tempo, está mergulhada nesta lama. Martirizava-se.
Tão profundo parecia o seu mergulho, que deveria estar em uma categoria mais obscura e silenciosa do que os demais do povo.

Um conceito menos nobre do que aquel do mestre Unamuno se ia fixando em sua alma angustiada. Movido por uma profunda crise existencial, Jorge começava a se classificar na categoria dos infra-históricos. Um conceito mais vil, mais enlameado, que julgava ser mais adequado à sua condição. Sua responsabilidade era maior do que a dos homens simples da maré: ele era um escritor, um homem letrado, quase graduado em Filosofia. Essa condição tornava sua passividade diante da miséria e da fome, uma coisa covarde e inferior. Flagelava-se...




Sinalética:

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VI – XVIII – XI – XII – XIII – XIV – XV - XXVI
XIX – XX – XXI – XXII – XXIII – XXXIV – XXXV - XXXVI
XXXVII – XXXVIII – XXXIX – L - XLVII - XLVI - XLV - XLIV
XLIII – XLII - LXII - LIX – LX – LXI – LI - LV
LII - LIV – XXX - LIII – XXXI - XXVII – XXIX - XXVIII


Sugestão de nexos:


►alea índex (em construção)





HONG-KONG AMERICANA




"Nasci na cidade do Recife, que é sob certos aspectos, a Hong-Kong da América, com a sua miséria acumulada, empastada neste grupo de ilhas que flutuam sonolentas, entre os braços dos dois rios:
o Capibaribe e o Beberibe”.


(Josué de Castro, in Homens e Caranguejos)

►alea índex

ACQUA

OU OUTRAS INDAGAÇÕES GENESÍACAS:


“A geografia prefigura a história”

Euclydes da Cunha
























Como teria surgido, aqui,
nessas águas atlânticas, outrora tenebrosas,
essa pétrea muralha que detém o mar?

Teriam os rios,
com a força milenar de suas enxurradas,
de suas grandes enchentes,
das aluviões que arrastavam
tudo o que podiam arrancar ao continente:
lajeiros escarpados,
árvores vetustas,
grandes quadrúpedes atolados na lama,
frágeis taperas,
aborígines indefesos;
teriam os rios, enfim, com lama e pachorra,
cimentado essa imensa parede calcária em nossas praias?

Aqui, onde pisamos, eram várzeas,
manguezais, lagunas, um grande delta,
onde os rios Capiberibe e Beberibe se espraiavam em regos,
regatos, rasas restingas, córregos, riachos, pauis e lagoas.
Éramos uma povoação que emergia das águas.

Acqua deveria ser o seu nome.

Mesmo essas pedras longilíneas,
que ora seguram as ressacas de agosto,
são filhas das águas.
Da paciência das águas operárias
e do tempo em seu fluxo inexorável.

Dessas duas forças insustentáveis em seu curso,
sedimentou-se essa antiqüíssima vila de pescadores,
calcária como a pedra dos arrecifes.
Somos a construção da persistente
engenharia dos rios e da sua inelutável
decisão de alcançar o Atlântico.

Ilha de Antonio Vaz - Recife - 1637


sexta-feira, 30 de julho de 2010

PRÓLOGO¹




ALGUMAS INDAGAÇÕES GENESÍACAS



Seriam as narrativas, fluviais, como as águas amarelentas desse rio?
Desceriam para o mar por um leito invisível, arrastando em seu curso as palavras enlameadas da memória e do sonho?
E, em que cais, em que foz ou embocadura erguerão as palavras, a Cidade, nascida desses detritos caóticos?
Lixões e aterros, o seu epílogo?

Que herói, anônimo e miserável, aguardará o abutre, acorrentado aos arrecifes?
Quem é esse Prometeu dos tristes trópicos, que, espremido entre o mar e o mangue, num segregado palafita, sobrevive às intempéries, à fome e à miséria, essas palavras torpes, cruéis e apocalípticas, companheiras fiéis de sua mítica agonia?





¹ de pro+logus, ou seja, uma introdução ao sentido; ou ainda, a capciosa porta por onde se pretende in(tro)duzir o ledor desse ilógico texto.

►Acqua

►alea índex (sumário em construção)



***

ADVERTÊNCIA



Leitor,
antes de iniciar a
viagem nesses Apontamentos
Esféricos, consulte o Bastidor da
Urdidura Possível, ou seja, a encaracolada
figura do capítulo XXXII. Contudo, não se fie
plenamente no que aduz esse bordado. Nas urdi-
duras, como na vida, existem surpresas, trapaças e
estratagemas próprias de um jogo. Um jogo? Sim.
Vem comigo! Convido-te ao ludus labiríntico.
Assume o tear se quiseres! Mas o centro
está em qualquer lugar e a circun-
ferência, em lugar nenhum.
Sabes costurar,
leitor?


(centrum ubique, circumferentia vero nusquam) *
***


*
►alea índex : escolha um nexo(link) : ► XXXII
*
Ou, se ainda não leu, leia o