quinta-feira, 5 de agosto de 2010

LVII – DEUS




Aguardo uma baiteira que me levará ao outro lado da maré. Iremos à Ilha-sem-Deus. Sem Deus parece ser toda essa região:

“Barracos,
aos cacos,
fincados na lama do mangue,
são farrapos de sonho
molhados na água insalubre...”

A lama preta tinge os homens, os olhos dos homens, a alma dos homens sem Deus.
Deus?
Certa feita, um velho burgomestre, influenciado pelo Clero, tentou mudar o nome da ilha.

Batizaram-na Ilha-de-Deus.


Deus?
Corre um menino esquelético pela lama. Deus? Seus ossos arfam de fome.

Deus?
Não sei se pela contradição estampada no extremo desamparo dos habitantes da Ilha, ou se devido à morosidade da tramitação do processo de mudança do nome na edilidade, até o dia de hoje ela ainda continua sendo chamada de Ilha-sem-Deus.

***


Segundo a Proposição XIV, da Ética Demonstrada à Maneira dos Geômetras, de Benedictus Spinoza,

“Afora Deus, não pode ser concebida nenhuma substância.”

Enquanto polia pacientemente as lentes de uma luneta, o nosso pensador excomungado ia abrindo os nossos olhos:

“Tudo o que existe, existe em Deus, e sem Deus nada pode existir.”
(Proposição XV)

Através dessa luneta translúcida, Spinoza revela seu monismo totalizador. Nele, tudo é Deus e Deus é tudo.


Acorre-me logo à mente a idéia (um tanto ou quanto, capciosa, reconheço) da presença de Deus nos excrementos, no monturo, na carniça: tudo, tudinho, é Deus! É impossível para o Absoluto criar algo fora de si. Nada pode viver ou existir, autonomamente, sem Deus ou fora Dele. Existir fora de Deus é a absurda negação dos atributos divinos da onipotência e da onipresença.


Portanto, toda miséria, toda dor, toda maldade é Deus. Por outro lado, é Deus também todo prazer, toda alegria e toda bondade.


Contudo, meu bom Spinoza, uso, nos olhos da alma, uma lente distorcida, diferente da tua lente ética e geométrica. E ouso afirmar, diante de tanto abandono e miséria nessa ilha flagelada, fincada no manguezal do Rio Pina, que há um lugar fora Dele:


UMA ILHA de purgação para prometeus famintos;

lugar de expiação para os seres que ousam existir fora da substância divina.




►alea índex