domingo, 1 de agosto de 2010

XXVI - A PROTOPOESIA


(falação etílica e inflamada de Jöhan Linz, em certo Congresso de Poetas)



Srs. Poetas,


(...) Estava, decerto, movido e comovido pela grandeza majestática da árida paisagem sertaneja, o escritor Euclydes da Cunha, quando pontuava que “a geografia prefigura a história”. Enxergava, quem sabe, através das lentes transfiguradoras da emoção. Diante dele descortinavam-se os sertões bravios, inóspitos, em sua imensa perspectiva. Daquele relevo deveria surgir, com certeza, um povo forte como as pedras e renitente como a caatinga.
No entanto, essa perspectiva euclydeana, como toda perspectiva que se preze, era apenas uma parte da verdade, compreendendo-se que a verdade está na soma de todas as perspectivas. Hegel já postulava que, “a verdade completa inclui todas as perspectivas”. Por sua vez, Ortega y Gasset afirmava que “a perspectiva se aperfeiçoa pela multiplicação de seus termos”.
Soma, inclusão, multiplicação de perspectivas. A verdade é total e geométrica: a nosso ver, Srs. Poetas, a verdade é esférica. E disso falaremos em lugar oportuno. Dilatemos, por enquanto, o pensamento, tomando a frase euclydiana sob outros olhares. Senão, vejamos:
Marx, grosso modo, enxergava as condições econômicas como a base de todo o processo histórico.
Já Schelling via, no mito, o alvorecer da história.
Ainda no mito, nos arquétipos, Carl C. Jung buscava a compreensão da alma humana.
Cada um desses sábios observadores, com peculiares lentes de aumento, mirava a o homem e sua trajetória, sob um particularíssimo prisma. Todavia, devemos atentar para o provérbio árabe, que, com líquida e cristalina sabedoria, aconselha cautela diante das certezas humanas, pois “a água toma a cor de seu recipiente”, como dizia certo Ibn Sina, também chamado entre nós, Avicena. Por isso, ao situar e adjetivar esses tão graves substantivos, deveríamos fazer-lhes uma singela pergunta:
— Geografia, Mito, Economia, História, de quem e para quem?
A resposta deve surgir quase que unanimemente:
— Do homem e para o homem. Para o agente da história, o sujeito, o ser pensante.
São, portanto, circunstâncias da vida humana. Circum-stantia! Realidades abstratas ou concretas, que forçosamente se radicam na vida de um homem. Vetores de sua instalação no mundo. De modo que se situam em campos vetoriais contíguos, mas distintos: de um lado, a geografia e o mito. De outro, a economia e a história. Aos primeiros denominaremos vetores aórgicos, e aos segundos, por oposição, de vetores órgicos.
Para a compreensão adequada dos primeiros, voltemos no tempo. Regressemos ao dia inaugural da criação:
Quando nada havia no Éden, dizem as Escrituras Hebraicas, (só para citarmos aquela que nos fala mais de perto), que o Espírito de Deus, Elohim, “pairava sobre a face das águas”. Depreende-se dessa descrição genesíaca, que, nesse instante eterno e remoto, já estava a Geografia, tomada aqui pelo elemento Acqua, H²O. Havia também o Mito, narrado pelo escritor, divinamente inspirado, como sendo Javé, o criador de todas as coisas. Estavam lá, Geografia e Mito, segundo a Torah, bem antes da criação do primeiro ser pensante, daquele que daria nome às coisas: o Adão.
Lá estava, naquele sítio pré-adamico, no mundo das coisas inominadas, o Mito Primordial.
Em sua obra mor, Mensagem, Fernando Pessoa, o maior poeta da língua portuguesa, vaticinava: “o mito é o nada que é tudo”. Deus é esse Tudo, o Aórgico Absoluto, Aquele que sempre esteve lá, no Antes, no Nada Original, no Indizível, no Mistério Inicial. Estava lá também a Acqua, nossa primeira geografia, mãe de todas as outras geografias e dos seres viventes. Mãe da espécie humana, pois é a mãe do barro e dos elementos químicos. Desses elementos, o Mito ergueria o Vir, o primeiro patriarca, e sua mulher, Eva.
A geografia é pois o aórgico primacial, ou seja, aquilo que derivou Daquele que “por não ter vindo foi vindo e nos criou”.
Os outros vetores, economia e história, vivem irremediavelmente ligados, em franco contubérnio. A economia, aqui entendida à flor da sua superfície, enquanto fator da busca humana pela solução de seus básicos e primevos problemas: alimentação, utensílios, habitação, ferramentas, armas e túmulos; só viria a existir imbricada com a ação do homem, ou seja, com sua biografia individual e, por extensão, com sua história coletiva. Consideraremos, então, a economia e a história, como vetores siameses e órgicos.
Cabe agora, uma pequena digressão sobre o pensamento que fundamenta essas minhas proposições. Decorrem, essas pobres especulações, da releitura que venho fazendo da verdadeira revelação filosófica, que é a obra desse desconhecido filósofo brasileiro, Vicente Ferreira da Silva, aqui denominado o Anunciador do Aórgico.
“O aórgico – dizia Ferreira da Silva- é o não posto pelo homem, é o que não se apresenta como resultado da produtividade artístico-criadora do sujeito”.
Ora, direis, — e eu ratifico o que estareis a pensar —, que só não havia sujeito artístico-criador, ou ser pensante, (excetuado o próprio Criador), como acima afirmamos, nas regiões edênicas e pré-adamicas, na eternidade que antecedeu a aparição do primeiro homem. Portanto, aórgicos, creio serem a geografia e o mito, essas testemunhas do dia inaugural, aspectos dionisíacos da divindade.
Vale ressaltar, e já concluo esse delírico discurso, que, como anunciava Ferreira da Silva “o Mito é, em substância, Poesia”. Poesia transumana, poesia-em-si. Não a poesia escrita, sujeita à elaboração individual, mas poesia com vida transcendente, poesia enquanto potência divina. É Ferreira quem nos revela essa, ubérrima e singular, Protopoesia. Essa fabulação mitológica, que deve ser o fundo último das teogonias dos vários povos do globo. Deve-se, pois, buscar nessa poíesis, nessa poesia das matrizes míticas, as puras possibilidades do que na História é realizado.
Nessa oracular filosofia ferreiriana, cujo fulcro é a idéia da protopoesia, evidencia-se a reinterpretação da mitologia como ‘poesia em si’ e matriz inexaurível da realidade.
A partir disso, pode-se agora entender aquela emoção euclydeana com a geografia da região de Canudos, como um mergulho no aórgico. Ou seja, a vertigem de um escritor urbano, atingido pela força daquela paisagem desértica, altaneira, e jamais tocada pela ação despótica do homem. Seria também da mesma intensidade a comoção dionisíaca que sentiu o autor de Os Sertões, em outra de suas viagens pelo Brasil, ao deparar-se com a imensa floresta amazônica: um estremecimento diante da imagem fascinante do aórgico, do não posto pela ação humana. Sua obra magistral seria, por esse prisma, fruta dessa reinterpretação do telúrico e aórgico rincão nordestino, pelo que nele há de mitológico e fundador da realidade.
O mesmo se pode dizer da obra de Ariano Suassuna que versa sobre a Pedra do Reino: uma reinterpretação sertaneja e armorial do messianismo ibérico, com a vertiginosa fundação de um universo mítico. Dessa obra citarei um dístico de certo Carlos Dias Fernandes, citado por Quaderna, que afirma que “os livros são condensações psíquicas das nacionalidades a que pertencem”.
Caberia aqui só um reparo à citação daquele aventuroso personagem: Não é qualquer livro que é capaz dessa condensação psíquica. Somente as grandes obras. Além dos dois, citados acima, só obras da envergadura de um Dom Quixote, de Cervantes, de um Grande Sertão – Veredas, do Rosa, do Avalovara, do mago Osman Lins, ou ainda, da sublime e majestosa Mensagem, do poeta-mor da última flor do Lácio. Bilac? Ora, diríeis. E eu vos respondo: Sem embargo do valor da obra do grande parnasiano, não é de Olavo que vos falo, e, sim, do gênio português, o Sr. Fernando Pessoa.
Para concluir essa peroração, que já se alonga por demais, indico-vos, pois, jovens poetas, dessa cidade-das-pedras-que-seguram-o-mar, o caminho embriagador da Protopoesia, da entrega amorosa às forças oníricas, à ondulação da vida, da geografia enquanto epifania numinosa dos deuses. Se quiserem escrever sobre essa urbe fluvial, enveredem pelas suas matrizes míticas, pelo que nela há de aórgico e de ancestral. Busquem uma Mitopoese antes de uma História. Lá nascerá o homem, o herói angustiado e só, entre temores e tremores. Subam aos arrecifes nas noites das grandes ressacas de agosto. Deixem-se arrastar pela força das enxurradas, nas enchentes das várzeas do Beberibe e do Capiberibe. E durmam ao relento numa baiteira em noite de tempestades sobre o manguezal. Corram nus, pelas margens enlameadas, como caranguejos de andada sob o ribombar dos trovões. Sintam medo, sintam pavor, mijem-se e caguem-se, ao fulgir dos raios e relâmpagos que derribam os altos coqueiros nas praias desertas da Ilha das Cabras. Ali também estarão os elohins, os odins, os vulcanos, os oguns, tupãs e todos os elementais, pois os deuses são também brasileiros e habitam, ab origine, o delta de nossos rios. Ave! Shalom! Saravá! Alah-Hu-Acbar! Viva Deus, que pequeno sou eu! (...)
(seguem-se aplausos e assobios da jovem platéia!)