quarta-feira, 4 de agosto de 2010

XLVIII - MÁSCARA






...Sento-me à escrivaninha. Trabalho como se vertesse gesso sobre um rosto para fazer-lhe uma máscara. (Mortuária?). Mas essa máscara se parece muito com a minha. O gesso, enquanto escrevo, refresca-me a face.

***

Jorge impacienta-se com as palavras, esses bichos escorregadiços que lhe escapam sempre. Levanta-se da mesa de trabalho e vai até a janela. Lá fora, o sol adeja sobre os tetos do bairro do Pina. Os velhos telhados, telhas retangulares, formam um estranho tablado, de onde emergem, vez por outra, as caixas d’água de amianto escurecido. Algumas parabólicas e espinhas-de-peixe apontam para o céu como se fossem campanários de capelas pós-modernas.

Parece um imenso tabuleiro de xadrez, pensa Jorge, imagetizando.

Apreciava o Xadrez tanto quanto o Quaderna apreciava o Baralho. Talvez por isso o mundo (lhes) pareça uma mesa e a vida um jogo, onde se cruzam Reis, Peões e Rainhas, governados pelas regras milenárias deste jogo real. Entretanto, distanciavam-se, ele e o genial rapsodo de Taperoá, no capcioso jogo literário. Jorge queria uma crônica não-epopéica. Nada de burgueses ou fidalgos. Nada de estilo régio ou pomposo.

Apesar de irreligioso, Jorge havia feito essa opção preferencial pelos pobres.

O Sol derrama-se, raios cristalinos, taça de champanhe, pelo céu azul; brilha, branco de espuma, sobre o areal; lateja sobre o lendário trapiche de André Luís Pina; brinca nas folhas novas do manguezal; repousa nas copas das árvores que ainda restam no terreno da antiga fábrica de rum; depois, vai saltitar com os pivetes, na praia do Cano.

Da varanda oeste de sua casa, Jorge vê, ao longe, os quintais cheios de vida da Rua Encanta Moça. Coqueirais, pés da fruta-pão, cajuais. Vida, verde, vida! Por que então pensar na morte? De onde me surge essa idéia esquisita de máscara mortuária? Eis um verbo difícil de ser conjugado: morrer. E, nessa manhã de sol então, é um inteiro despautério. Reanimado, volta à máquina de escrever:

-- Um d-e-s-p-a-u-t-é-r-i-o! resmunga o professor Jöhan Linz, sentado em sua espreguiçadeira.O velho mestre esferista está lendo os jornais do dia, no alpendre de seu sobradão colonial, às margens do açude de Apipucos. (ou, encruzilhada dos caminhos, como ele costuma chamar o bairro onde reside, aludindo ao sentido da palavra em tupi-guarani).
O Mestre sempre acorda cedo. Antes mesmo que os galos e o sol, vai ao quintal e conversa com suas aves de estimação: guinés, gansos, marrecos, pavões. Chama-os com sua voz mansa, timbre de mel de uruçu: tiss, tiss, tiss! Enquanto lança no ar, fartamente, grãos de milho, porções de avevita. Faz isso todas as manhãs. Diz que é um hábito franciscano. Embora não seja católico, diz que isso é um agrado que faz ao santo. Depois, sobe ao alpendre. Suas sandálias rasgam, secas, o silêncio de madeira do assoalho. Um ruído curtido, de couro. Recebe os jornais das mãos do caseiro e se esparrama na velha cadeira de balanço. Lê, um por um, todos os jornais recifenses.
-- Um despautério sem tamanho! reclama, lendo, na Seção de Cartas do Diário, uma, de seu amigo, o livreiro Melquisedec.
-- Um descaso com nossos buquinistas. A praça do Sebo virando um mictório público ao ar livre! Tem razão o meu amigo Melq. Isso não pode acontecer com a cultura recifense! pensa, em voz alta, como se estivesse dirigindo aquelas palavras ao caseiro, que ri, acostumado aos arroubos do Mestre.



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...O Mestre fecha o jornal, aborrecido. Acaba de lembrar de um compromisso. O Instituto Franz Post, voltado para a preservação do acervo holandês em Pernambuco, (Mestre Linz é descendente dos batavos), vai homenageá-lo pela dimensão que tomou o movimento Esferista nos círculos culturais da cidade. Fala-se, à boca miúda, que o Esferismo tem provocado ciúmes até nos Armoriais, tal a importância de suas façanhas nas artes e na literatura. Acusam-no,  na certa, por inveja ou despeito , de movimento apolítico e alienado. Coisas que sempre se diziam dos que não mergulham de cabeça na luta contra o regime.

Mesmo os Armoriais receberam essa pecha, amigo Jorge. contemporizava o Mestre Linz, que não levava a sério o que propagavam da sua teoria.

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Dizia-me, o Mestre, que suas idéias, inicialmente, se prestavam apenas para dar sustentação à sua produção artística e que jamais havia aventado a possibilidade de fundar movimento ou escola. A coisa fugiu ao seu controle depois de ter feito um discurso aos poetas, dito marginais, do ‘maldito’ Beco da Fome.

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O Mestre não fazia acepção de pessoas. Onde havia público lá estava ele a discutir idéias. Nunca fugia a um bom debate e apreciava o convívio com os jovens artistas da cidade. Aquele discurso no Beco foi a centelha que provocaria o incêndio. Os ‘marginais’ da poesia trataram de propagar as idéias “daquele velho maluco e boa praça” pelos becos e vielas da cidade maurícia. Falavam de uma tal protopoesia associada à busca da intra-história, em que se negavam, ao mesmo tempo, a literatura e a história tradicional. Julgavam que o ‘holandês maluco’ era comuna, nietzcheano e ateu. Um verdadeiro sarapatel intelectual. Um pré-tropicalista, talvez, como o Jomard, o Mautner e o Tom Zé.
Despertariam, com essa efervescência juvenil, os olhares da imprensa alternativa e, com ela, a vigilância da insidiosa polícia política, a DOPS.

Em busca dessas novidades, a esquerda e a direita recifense acorreriam ao Clube Franz Post, naquela manhã.




XXV◄


►alea índex