Naquela noite, descobri, surpreso, tua pluralidade. Havíamos bebido muito. Era uma apresentação folclórica no Pátio de São Pedro. Danças africanas, afoxés, maracatus, coisas assim... Tu estavas encantada com aquele baticum. De repente a tua face, habitualmente serena, sofre uma metamorfose. Tua tez morena fica avermelhada. Teu cabelo já negro torna-se mais negro do que a noite. Da ponta de tuas orelhas surgiram duas enormes argolas zíngaras. Brilhavas, vestida a ouro e ébano.
Então começaste a gargalhar estranhamente. Dançavas entre as mesas do pátio. Dança flamenca, cigana. Uma das mãos segurava a barra da saia; a outra, erguida, balançava um imaginário pandeiro. Dançavas e rias. Rias e dançavas. Perplexo, vi quando derramaste cerveja sobre um dos fregueses do bar. Tudo estranho, muito estranho para uma mulher centrada e realista. Já não eras mais tu mesma. Alguém agia em ti. Uma outra personagem te possuía. Outra mulher, mais vulgar e debochada, girava com teu corpo.
Naquela noite descobri a outra, a terceira. Não te bastavam duas vidas: Marília/Mariana? Havia em ti uma lúbrica cigana. Aquele teu materialismo dialético sucumbia perante os ancestrais de África. Freud já não te explica, Mulher. Talvez Jung explicasse melhor essa tua surpreendente mitopoese...
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