quarta-feira, 4 de agosto de 2010

XXXVIII - MAGRICELA

A patroa entrou de repente e flagrou Seu Levi com a mão enfiada dentro das minhas calcinhas. Apanhei na cara limpa: dois tabefes. Depois, fui escorraçada do emprego feito uma cadela sarnenta. Entrei em pânico. Chorei desesperada, porque sabia que não tinha mais onde morar. Minha avó não iria me querer em casa. Quando decidi trabalhar de empregada doméstica, virou pra mim o olho que enxergava (ela tinha um olho só) e disse que eu teria de me virar com meu patrão, o português, dono dos barcos. E que nunca mais voltasse à Ilha-sem-Deus. Eu não entendi bem o aviso. Mas agora eu sei de que me alertava. Caí nas garras de um tarado por crianças.
Como não tinha casa pra voltar, decidi ficar zanzando pelas ruas. Parecia bosta n’água. Passei dias de fome e sede. Andava suja e maltrapilha. Até que lembrei de procurar Dona Sula, minha madrinha. Ficava na Brasília Teimosa, aquela comunidade de pescadores que invadiu uns terrenos da Marinha. Fui bater lá. Eram uns oito ou dez palafitas, protegidos do mar pelos arrecifes. Minha madrinha era muito pobre. E tinha um jeito esquisito. Naquele tempo já morava com outra mulher. As duas me olharam penalizadas. Não tinham muitos recursos, mesmo assim fui bem acolhida. Roupa, comida, esteira pra dormir. Mas minha madrinha não tinha como me sustentar, coitada. Fez o que pôde.
Por conta daquela miséria extrema, em poucos dias, meu drama iria virar tragédia urbana. Fui levada pelas mãos da minha madrinha (sei que não fazia por mal) para João Estivador. Ele era quem ‘preparava’ as meninas da zona.
Doeu muito aquilo. Doeu no corpo e na alma. Perdi sangue por uns cinco dias. Nem era moça ainda. Treze anos, uma criança. E o João era um cavalo batizado. Gigolô da Odette, famosa dona de bordel, ele era considerado o pai da zona. Estuprava e depois largava as meninas no baixo meretrício. Vivia disso. Todas as cafetinas do lugar o tinham na maior conta. E pagavam pelo serviço.
Foi assim que de déu em déu, de mão em mão, fui parar na zona mais infecta da Brasília Teimosa. Tornei-me, a Magricela, ninfeta preferida dos pescadores, marinheiros e gringos pedófilos, em visita ao Recife. O que poderia eu esperar da vida, além da solidão e da doença?
 Foi assim que cheguei até aqui, doutor. Tenho apenas vinte e poucos anos e já estou nessas condições de saúde.


►alea índex
► XXXIX

(Continuar daqui, com a descrição do hospital do câncer.
Sífilis, câncer de útero, HPV, cancro mole, etc.)