(...) palpar com a pupila
a pele das coisas (...)
Ortega y Gasset
...Pretendo também alargar os limites do visível. Não é vanguardismo. É necessidade. Preciso, desesperadamente, chegar ao mundo. E, chegar ao mundo, disse um pensador moderno, é tomar a Palavra, transfigurar a experiência em um universo do Discurso.
...Por isso busco imagens com você, Marília. Não procuro a Verdade, nem a Mentira. Não sou filósofo. Sou poeta. Busco, contigo, a superabundância de realidade. Se a meio caminho encontro abelhas, flores e carneiros, se me deparo com um maravilhoso pássaro de seis asas, pouco importa! Contigo, Marília, profanarei o sagrado e consagrarei o profano. Contigo emergirei do mar, peixe-de-asas, num salto inesperado e cheio de riscos. Saltarei na vida! Colherei tuas surpresas com arrebatamento. Furarão meus olhos, os albatrozes, com seus bicos vorazes? Enxergarei então pela lente de tua câmara fotográfica. E não recuarei. Recuar é tornar ao oceano de mediocridade.
...Então, repito, não quero explicar o mundo. Quero confundi-lo. Trago em meus olhos fogo e dissensão. Ouso imitar o Mestre e atritar as palavras até fazer saltar delas chispas de fogo, que incendeiem as consciências. Se os tentáculos da aranha tentam me sufocar, “já não me calo, mariodeandrademente, esperneio, grito. Tanto ridicularizariam meu silêncio quanto esta grita.” Jorra, genesíaco, da minha garganta, o sangue de Abel. Vejo o casebre soterrado. A saga dos bombeiros. A morte, Marília, nos chega tão gelada nesses videotapes. Escondem-se os culpados, nessas reportagens.
Apontem-se os culpados!
Somos nós, Jorge.
Nós?
Sim. Nós e a nossa indiferença. Impassivelmente, tropeçamos em cadáveres nas calçadas. Estamos enredados no tecido dessa aranha: meninos-de-rua, prostitutas, aposentados, favelados, mendigos, nanicos vindos do sertão. Todos ilhados pela nossa indiferença, nosso desprezo. Somos culpados. Culpados por omissão.
Engasgo-me com uma golfada de sangue de Abel. Eis o sangue de meu próprio irmão! Minha voz sangra, nesses textos!
Há poesia, Marília, nessas palavras cobertas de papelão, de zinco, sacos de lixo? Que figuras de linguagem moram debaixo das pontes?
Consultem-se os acadêmicos. Eu não sou capaz de responder. Tudo o que pretendo é alargar os limites do visível. E desvelar o que é, hoje, invisível aos nossos olhos. E, nessa peleja, só conto com você, Marília, e com suas lentes transfiguradoras da emoção.
...Sem você, camarada, nada poderia ser dito. Nada mesmo!
***
FOTO N.º 1
Espragatados
(INSERIR: Rendição de Canudos/foto Euclides da Cunha)
CANUDOS
De onde escorrem
essas figuras líquidas?
Deslizam,
Pairam,
movem-se no ar...
Buscarão, caladas, a geometria do caos?
Aonde vai esse esse cortejo?
Quo vadis?
Seguem a ordem inversa,
O pó dos sonhos
E adentram ao mundo absoluto...
▼
CIDADE SITIADA
Sobre as colinas ao teu redor,
brotam favelas e o ódio cresce.
De lá te espreitam as tuas vítimas.
Enquanto danças na orgia
Do selvagem capital,
Te embriaga a vinhaça
o CO2, a fumaça;
Tocaiam os enjeitados: negros, mulheres, crianças...
▬ Tu danças e o tempo passa...
o tempo passa e tu danças... ▬
Breve a cruenta vingança
Dos operários famintos
Das putas mais sifilíticas
Dos trombadinhas lanzudos
(descenderão de Canudos?)
Breve, ó mãe dos burgueses ricos,
Uma legião de nanicos,
Vinda do alto sertão,
Fará a Grande Invasão:
Desce o Arraial dos Palmares
Que agora habita nos morros de tua periferia;
Desempregados e loucos (já escuto seus gritos roucos!),
Os quilombolas modernos,
Zumbis saídos do mangue ▬ sem-terras vindo do inferno,
Virão ceifar-te com sangue,
Armados até os dentes, com enxadas e picaretas,
Peixeiras e canivetes,
Foice-e-martelo, ...marretas.
Saquearão teus mercados, teus bancos, tuas mansões.
Farão trincheira em teus templos, alucinados de fé
E, enlouquecidos de fome, derribarão teus quartéis.
***
Um Condor gritou nas praças
É tempo de ouvir sua voz.
Se calam a voz do povo...
▬ POETAS, GRITEM POR NÓS!
Jorge Dantas Cabral de Lima Neto
(um clamor contra o sistema!)
►alea índex
II◄