quinta-feira, 5 de agosto de 2010

LXII - KOIMITERIUM







Apesar da sombra benfazeja desses oitizeiros, jambeiros, mangueiras; arvoredo secular de aparência tão grave e imponente quanto a dessas edificações neo-clássicas onde abunda o mármore de Carrara; apesar disso não gosto, nunca gostei, de entrar aqui. Desprezo esses funcionários municipais, cabotinos, com ar fingidamente respeitoso, reverência mal-disfarçada, hálito de aguardente. Se eu pudesse nunca entraria nesse lugar. Tudo aqui me deprime. As flores ficam tristonhas nesses quartinhos contíguos e mal-asseados. Desolados e desoladores os cortejos atravessam o pátio arborizado. Os mais velhos persignam-se defronte da capela de Santo Amaro das Salinas. Um dos cortejos caminha em meu encalço, mas sem muita pressa, andar pausado e grave no átrio silente. O silêncio amplifica cada ruído. Piam bem-te-vis nas copas dos oitizeiros. Ouve-se um choro de mulher carpindo. Jogam-se flores sobre a terra revolvida de uma escavação recente. O que irão semear nessa abertura? Meu pai pede a pá ao funcionário de macacão azul. As pessoas começam a atirar, solenemente, uma após outra, várias pás de terra fértil sobre os cravos quase murchos. Estranha semeadura! Ouço uma voz familiar lendo um de meus mais tristes poemas... afasto-me compungido por entre as árvores frondosas. Tento conter as lágrimas quentes. Lágrimas fundas e purificadoras.
Do lado de fora desses átrios a cidade ruge. Rumores da vida lá fora me chegam da praça que há ao lado. Taxistas e floristas conversam sobre o tempo. Os ônibus, superlotadas esperanças, atravessam ruidosos a avenida da Saudade. Hoje é terça-feira nessa cidade das pedras que seguram o mar. Meus amigos e parentes mais humildes voltam pra casa a pé. Meu nome está nos corações saudosos.
Quem diria? Domingo ele esteve comigo no ateliê. Eu senti que ele não estava bem. Subiu as escadas mais devagar do que sempre. Dirigiu-se ao sótão, cabisbaixo. Um silêncio de impressionar. Pouco depois desceu, ainda calado. Pediu-me um café. Falou-me de uns originais recusados por uma editora. Estava meio ressentido com um certo beletrista. Despediu-se de forma estranha. Levava consigo um saco plástico cheio de papéis, que imaginei serem os seus manuscritos. Vi, de relance, meio escondida, uma garrafa de álcool.

-- Pra que esse álcool, Jorge? Não me vá fazer nenhuma loucura.

Não respondeu. Desceu lentamente as escadas e seguiu na direção do mercado da Boa-vista. Depois disso não mais o vi.

...A notícia chegou-me através de uma tia, que mora aqui perto, nos Coelhos.






►alea índex


LIX ◄