quarta-feira, 4 de agosto de 2010

XLVI - ANIMA






Os olhos vazados de minha mãe. Lembrança ruim: cuidava da enorme palmeira do quintal da casa de Tejipió, quando um dos talos, uma haste esverdeada, espetou-lhe o olho esquerdo (ou foi o direito?). Era danada pra se acidentar, Dona Joana. Outro dia prendeu o dedo na espreguiçadeira do terraço. Foi um Deus nos acuda! Ainda bem que morávamos na rua do Pronto-socorro. De casa ouvíamos as sirenes nervosas das ambulâncias chegando e saindo. Era uma correria como essa: a mesma pressa e o mesmo nervosismo. Pra que tanta correria, minha gente? O pior já passou. Nunca gostei de pressa. Nada para mim era urgente. Isso desde a meninice.


Tempo bom, o da meninice: tardes bucólicas com cantar-de-galos, sítios com mangas no Sancho... rio do Paul, rio Triângulo, -- piabas e traíras, águas tranqüilas --, passavam lentos pelas campinas-hoje-favelas. Tantas lembranças agora, por que? Parece até que um filme de minha vida rola, instantâneo, diante de meus olhos. E essa ambulância que não pára de correr? Será que não alcancei meu objetivo? Dezessete andares e uma rua com vento a favor.Não devia ter ousado. O nome desse cais não trazia bons presságios. Por que não Dionísio ao invés de Apolo? Seria mais aprazível à alma. Alma? Que alma?

Alma: do latim anima, o princípio espiritual do homem, concebido como separável do corpo e imortal.

Alma...sou uma?


Por coincidência, hoje é segunda e minha mãe dizia ser bom acendermos velas para as almas nesse dia. As almas carecem de luz, dizia-me.
Ouvindo o som estridente dessa sirene, creio que, antes de luz, as almas carecem é de silêncio. De silêncio e de paz...



►alea índex

XLV◄