quinta-feira, 5 de agosto de 2010

LX - D’ANTAS






TÁBUA DE MARÉS
Baixa-mar #08h36 - #21h00





A descida dos tupis do planalto continental no rumo do Atlântico foi uma fatalidade histórica pré-cabralina, que preparou o ambiente para as entradas no sertão pelos aventureiros brancos, desbravadores do oceano.
A expulsão, feita pelo povo tapir, dos tapuias do litoral, significa bem, na história da América, a proclamação de direito das raças e a negação de todos os preconceitos.
Embora viessem os guerreiros do Oeste, dizendo "ya so Pindorama koti, itamarana po anhatim, yara rama recê", na realidade não desceram com a sua Anta a fim de absorver a gente branca e se fixarem objetivamente na terra. Onde estão os rastros dos velhos conquistadores?.
Os tupis desceram para serem absorvidos. Para se diluírem no sangue da gente nova. Para viver subjetivamente e transformar numa prodigiosa força a bondade do brasileiro e o seu grande sentimento de humanidade. Seu totem não é carnívoro: Anta. É este um animal que abre caminhos, e aí parece estar indicada a predestinação da gente tupi.

............................................................................................................................................(Manifesto da Escola da Anta)







DANTAS, esse é o nome da família de minha mãe. Herança longínqua dos paraibanos, numa época em que tudo por aqui era ainda província de Pernambuco. Os tupis, dizia meu avô materno, consideravam muito as capivaras, também chamadas de anta ou tapir. E esse rio era o habitat natural de centenas, milhares, delas. Daí o nome, Ribeira das Capivaras: Capibaribe.
Usava apenas o CABRAL, sobrenome paterno. A razão disso nunca me ocorrera antes. Mas, ao ler o Manifesto da Escola das Antas, compreendi o que se ocultava sob esse uso inconsciente. É que a família Dantas, mais bronzeada e morena, seria absorvida, como de fato aconteceu, pela gente branca, dos Cabral de Lima. Sou o subproduto dessa fusão: um sarará.

Às vezes, estou mais cabralino do que das antas. E, por isso, vejo o rio disforme, cão sem plumas, com viu, bem ou mal, o Cabral mais famoso: o poeta. Não me refiro ao Cabral, invasor de Pindorama, dito descobridor. Aquele encontrou águas limpas, potáveis. João, o poeta, não beberia dessa água.
Também não bebo dessa fonte. Não sou nhengaçu. Tampouco antropófago. Mas, tenho sim, uma porção d’antas, que se deixa absorver pelo opressor, para sobreviver, subvertendo, subliminarmente, a lei e a ordem.
Assim, miscigenada, sincrética, parece ser apolítica, essa minha porção d’antas. Entanto, vai destilando o seu veneno intra-histórico nas veias do conquistador. Submete-se, vagarosamente, ao vencido o vencedor. É que a intra-história, renitente, vence pelo cansaço. Transforma, primeiramente, os costumes, invade a culinária, as crenças e, mais tarde, subverte a Língua. Esse é o aperto final da boiúna intra-histórica. Primeiro mói, tritura, depois engole o idioma do opressor. Fingindo submissão, solapa os alicerces da cultura alienígena.

***

(morreu galego?)

***

"Cadê o galego que assi ledo no paaço,
pedio vinho e fruita e lançouse a dançar?
"

***


Marília dizia-me, que, ao invés disso, o oprimido introjeta, patologicamente, o opressor. Aplaude, hipnotizado, a tirania do algoz. Por isso alguns retóricos ufanistas chamavam os portugueses, cinicamente, de “os desbravadores do oceano”.

"Escravocratas, genocidas, invasores cruéis: talvez essas palavras sejam mais apropriadas, dizia-me ela, indignada.

Diante dessa mulher ensolarada, ativa e militante, eu me sentia acuado, feito uma anta diante de medonha e parda onça suassuna. Nesses instantes afloravam os Dantas, os abridores de caminho, os resignados, que em mim habitam há séculos, intra-historicamente.

Quando faço o mea culpa pelo que aconteceu na DOPS, essa reflexão sobre meu totem não-carnívoro, a Anta, ajuda-me a diminuir o meu desassossego. (Ou alimenta o meu cínico remorso?). Publiquei, naquela ocasião, a minha abjeta declaração de não-comunista, safando-me da polícia política. Não me safei, porém, da minha consciência.

Contudo, de que adianta essa fingida paz exterior, se para chegar a ela, recorro a racionalizações tão metafóricas quanto inúteis: capivaras, antas, tapires? Agrada-me, apesar dos pesares, exprimir essa verdade. Nunca fui mesmo comunista. Nem qualquer outra coisa do tipo. Sempre abominei os ismos, embora me interessasse pelo anarquismo. Um anarquismo moderado, bem sei: não-violência, cooperativismo, auto-gestão. Jamais adotaria a fúria anarquista dos estudantes de Paris, em 1968. Sou pacífico, cordato, conciliador. Uma Anta!

O que Marília, mulher valente e militante, via tanto em mim, pra tanto bem-querer?




►alea índex