quarta-feira, 4 de agosto de 2010

XXXV- BESTA OSMANIANA





“Agora, erramos, orgulhosos e tristes, de ato vão em ato vão, modelando vasos fechados e cortando lanças circulares, não mais portadoras de aguilhão. Uma besta espantosa, de índole recurva, nasceu do cansaço universal e impera entre nós: come voraz a cauda e engole a própria garganta. Criações e atos perecem: sua respiração interna, letal.”
.............................................................................................................................................Osman Lins




Nos últimos dias, venho sentindo a sensação de estar criando um inútil objeto estético. Não há como escapar desse sintoma neurótico, sendo cidadão de um mundo niilista. Poderia alguém viajar no ventre da baleia sem ser digerido pelas secreções de suas vísceras; sem se corromper, sem sucumbir ante a volumosa força das entranhas do cetáceo?

Sempre me acordo tomado pela angústia de ser parte de uma civilização que agoniza lentamente. Sento-me, todas as manhãs, diante dessa máquina e modelo uma estranha máscara mortuária. Folheio Osman Lins e deparo-me com a imagem desse animal autofágico. Somos contemporâneos de uma sociedade entrópica. De um organismo que se despedaça. Uma máquina programada para destruir a si mesma...

Enquanto modelo essa máscara, ouço ao fundo a voz dorida de Edith Piaf. Pela janela vejo a Ilha-sem-Deus. Invade-me as narinas, a maresia do ar. Meus cinco sentidos, as portas da minha alma, repentinamente alertas para essa apreensão lírica do mundo. Um lirismo arrebatador, como um súbito acréscimo da receptividade disto que me circunda. Percebo, apavorado, uma dilatação dionisíaca do real. Eis que o grande Pã me sufoca! Sinto-me diante da perspectiva de ser devorado pelas mandíbulas dessa besta espantosa, que estertora, enquanto que me arrasta no seu ventre. Do fundo da alma me chega uma oitava de Camões:

“Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da Terra tão pequeno?”


Não sei por que insisto nesse tema. Minha psicanalista, ao ler a ELEGIA PÓS-MODERNA, poema que eu acabara de escrever, aconselhou-me para que me ocupasse com amenidades.

— Ninguém se interessará por essas coisas, Jorge, ponderava ela.

Foi o bastante: abandonei seu consultório e nunca mais voltei lá.
Conforta-me constatar, ao ler Osman e Roger Garaudy, essas duas grandes almas, que desde 1968, eles também estavam debruçados sobre o mesmo tema... Na Europa, o Green Peace mal dava os primeiros vagidos...

Estaríamos todos criando uma obra inútil e sem sentido?
Pouco me importa! Arranharei, com unhas afiadas, o ventre verde-oliva desse monstro. Creio ser esta a única atitude possível, no presente momento histórico, a quem viaja nessa bizarra embarcação.


***

(transcrevo abaixo o poema criticado pela psicanalista):



ELEGIA PÓS-MODERNA
ou Réquiem ao Futurismo


É preciso traduzir a náusea dos esgotos a céu aberto,
A lenta agonia dos canais imundos,
Escoadouros dos dejetos vis da máquina do mundo.
Quero versos oleosos e negros
Que exalem a fedentina dos peixes mortos
pelos milhões de barris de petróleo jogados ao mar.
Palavras pútridas e fétidas
Como a alma dos rios das cidades industriais.

Houve um tempo em que se cantavam odes triunfais
Fraques e cartolas saudavam fubicas velozes.
Mas os futuristas há muito mudaram-se para o campo
Apavorados com o rugido cruel dos motores da Ferrari.

Ó, adoradores do imediato,
Há motivo para exclamações eufóricas?
Hoje, um supersônico atravessa a Etiópia num segundo,
E nem por isso os negrinhos esquálidos sobrevivem à fome.

É preciso elegias e não odes.
Nossos versos não devem amar os antigos.
Façamos os versos para/odiá-los.
Na morte, para onde iremos, não há ciência ou indústria alguma.
E vos digo que Marinetti não leu uma linha sequer de Rudolf Clausius ou Sadi Carnot.
Saudava os automóveis num mundo laplaciano e
Com fontes inesgotáveis de energia.
Arre! Santa tolice!
Sobre as fábricas, sobre as gares das metrópoles modernas,
Pairava o irreversível anátema da entropia.

Era mentira a correria do progresso.
Havia um câncer na alma de aço do mundo.
Choremos, pois, à dolorosa luz das siderúrgicas,
Com seus fornos entrópicos, desagregadores e falidos,
onde arderam cadáveres proletários.

Novos profetas apregoam o fim de tudo!
(Entre eles vejo a cabeleira desgrenhada de Einstein)
Ogivas álgicas inauguram o apocalipse.
Baratas cascudas passeiam pelo parque, indiferentes.
E as criaturas perdidas na imensidão que enche a Terra
Olham o firmamento, angustiados olhos ardentes...

Tenho febre e escrevo:
Agora os poemas estão pejados de nojo.
Rói-me um cínico remorso:
Pertenço à raça abjeta de construtores dessa sociedade necrófila.
O que somos, além de um bando de aves de rapina?
Criaturas assombrosas e assombradas, digitamos programas genocidas.
Grandes máquinas soterram lagos.
Serras sórdidas ceifam florestas.
Ó civilização decadente e agonizante,
Ocaso caótico dos engenhos mórbidos,
Raça de víboras que morde a própria cauda!
Ó rodas... ó engrenagens enfraquecidas! Rangido obsoleto.
Mundo ferruginoso das máquinas esquecidas no pátio de manobras.
Espasmo retido dos maquinismos atrofiados.
Onde a fúria inconseqüente?

Tragam-me à cena os futuristas!
Velocíssimos computadores de quinta geração
Teleprocessarão dados dantescos:
Milhões de mortos na China;
Miséria nas favelas do Brasil e fome nas tribos africanas.
Distante, o brilho dos bólides sobre Guernica,
Chorem comigo lágrimas ardentes com os olhos japoneses de Hiroshima;
Assistam comigo aos mísseis pirotécnicos sobre o Vietnam.
E então eu lhes declamarei cloacas pestilentas
Rimas de vísceras de crianças mutiladas
Versos azuis de Césio 137.

No meu país os sofistas traficam leis no Planalto Central
Enquanto os filhos brincam games videotas cercados de seguranças.
É a nação dos que acordam sob as marquises e tropeçam bêbados na angústia.
Lá, os letrados insistem em dizer, em bom vernáculo:
Produzir é preciso!
Viver, não é preciso.

Por isso na há mais tempo para os poetas que se esgueiram pelos becos
Com elefantes escondidos entre os medos.
Nem se pode mais fugir pra Pérsia ou Gerais. Minas não há mais.
Mas há uma enorme pedra no caminho
E a vida humana exige a sua remoção.
Há metafísica maior do que cruzar com gente saudável e dizer bom-dia?
Há algum pecado em sonhar com uma menina a comer chocolates
E esperar que seu pai tenha um emprego para pagar a conta da Tabacaria?
É panfletário querer o poeta água limpa e comida nas mesas modestas?
Sim?!
Já não me importo!
Não há mais tempo.

A febre aumenta e ainda escrevo.
E ouço o ranger de dentes dos demônios do turno da noite.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a frieza disto.
Um frio entrópico disto totalmente imprevisível para os antigos
Que os gregos, os rabinos e Constantino
Morram asfixiados com o cheiro surpreendente das tintas e solventes
Da oficina de lanternagem!
E que os pequenos anjos do aroma sintético
Do pintor neobarroco Eugênio Paxelly, assaltem os passantes,
Ou sujem pára-brisas por moedas irritadas.

Gordas matronas empurram carrinhos repletos do inútil,
no Shoping Center Augusto Comte;
Aristóteles, zangado, faz careta ao fim do século.
Deliro, febril e convulsivo.
Digito, a custo, stop no remoto.
O vídeo perde o brilho estúpido e eu adormeço enquanto
Espero a morte lenta e contemporânea dos morféticos
E os poemas escorrem do meu corpo, feridas purulentas e escuras,
Como os rios sem vida que cruzam a minha terra natal...


Jorge Dantas
maio/72


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