quarta-feira, 4 de agosto de 2010
XXXIII - MAGRIÇO
Uma sugestão divina (quase sempre, esquecida pelos cristãos):
"quando orares, entra no teu aposento e ora em oculto,
pois teu Deus, que vê em oculto, te responderá..."
..................................(Evangelho de Mateus, o publicano)
DEITADO na calçada, sob a marquise do Grande Banco, geme o pivete, quase inconsciente. Geme e balbucia frases desconexas:
Dum gáa laicote noberrete van...áli kam menesse! Áli...
Os passantes olham rapidamente, acostumados à miséria nas ruas da Cidade. Na praça, em frente ao Banco Lar Brasileiro (sugestivo, o nome), megafones histéricos anunciam o reino de Deus. Fiéis entoam cânticos entrecortados por ovações e aleluias. Uns emocionam-se com as palavras de um exaltado orador e sussurram glossolalias. Os mais jovens dirigem-se até o pivete que se contorce na calçada.
Dum gáa laicote noberrete... áli kam m...
É a língua dos anjos, grita surpreso um dos jovens crentes.
O Pastor, comovido, aproxima-se dos jovens fiéis.
É o sinal dos tempos. O sinal do profeta Joel. Cristo breve vem!
A platéia de curiosos e protestantes cerca o corpo do menino magricela.
Surge, então, espremendo-se no meio da turba, um preto velho, barba branca, carapinha. Pede licença aos populares, o ancião, pele negra avermelhada, jeito manso de avatar indiano, e levanta o pirralho pelos braços franzinos.
Vambora, Magriço, alevante... Cadê teu irmão? Alevanta!
E, dirigindo um olhar de olhos baços, aos curiosos:
Num é nada não, gente! Ele é neto da Nega Ôiazul, minha vizinha lá da Ilha-sem-Deus. Né nada não. Isso foi cola. Cola de sapateiro e fome...
Diante do Grande Banco do Lar Brasileiro, a praça volta à mesma liturgia da vida normal. Os passantes voltam a olhar tudo rapidamente, acostumados a cruzar com a mesma miséria nossa de todos os dias. Os fiéis retornam aos mesmos megafones estridentes, anunciando o mesmo reino de Deus.
Arrastando seus andrajos, afastam-se, resignados, o velho e o menino, na direção da Ilha miserável...
Pelos becos e vielas da Cidade, ecoava a milenar indagação de um fariseu:
"Senhor, quem é o meu próximo?"
E o pastor, grave e solene, em frente ao Grande Banco, prega, ao megafone, a mesma, e tantas vezes repetida, parábola do anônimo samaritano.
***
Trancrevo aqui uma sofrida epifania do JORGE DANTAS:
O NEGRINHO E A FÉ NO VAZIO
O negrinho favelado, magro e feio orava todo dia,
Pedia queijo e pão
Boneca pra irmã
Sapatos e um pião...
Passava o dia perambulando pela cidade,
Bigu nos ônibus, pela traseira;
Catando lixo
Cheirando cola
Batendo bola, carteiras e relógios;
Banhando-se nas fontes
Salto solto das pontes, fugindo dos meganhas.
Mas, á noite, no barraco,
Daquela Ilha-sem-fé-e-sem-arrimo,
Rezava com insistência,
Pedia a Deus clemência:
Decerto ia mudar, crescer e estudar.
Dar duro no batente,
Morar numa casa rica,
Ter uma mulher bonita e um cobertor de lã.
Que Deus não esquecesse a boneca da irmã...
Até que um dia, o negrinho foi flagrado
Fumando a erva numa esquina da favela
E angustiado, perguntava ao soldado:
Se eu rezo tanto, por que não sou atendido?
Menino besta, porque Deus nunca existiu.
Quando se reza, a gente fala com o vazio.
E o negrinho, magro, feio e favelado, nunca mais rezou.
Ficou mais magro, feio, favelado e triste.
E, dentro do peitinho desolado,
Um deus distante, surdo e mudo, inacessível,
A quem culpava por sua vida de excluído.
Mas, quando adormecia no barraco, ébrio de cola, fome e frio,
Ainda sonhava haver no céu um estranho deus:
O Vazio...
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