...A tarde cai sobre o manguezal. Pequeninas candeias já tremeluzem no casario. Algumas embarcações retardatárias começam a atracar no ancoradouro improvisado sob as palafitas. Os homens desembarcam estafados e se arrastam até os casebres. A miséria, com suas faces encovadas, aguarda silenciosa, em cada porta. Sua sombra tenebrosa se espalha pelas ruelas da Ilha-sem-Deus. A maré inicia sua vazante. Todas as baiteiras já estão ancoradas...
* * *
Desembarcamos com lama no meio das pernas. O que é que vim fazer aqui, meu Deus? Estou à toa. Desempregado e ocioso. Vim com uns amigos conhecer a ilha. Alguns são pescadores na entressafra. Outros, biscateiros ou desocupados, em busca de uns goles de aguardente.
As outras baiteiras já estão chegando. Um por um, vão desembarcando aqueles homens com a pele engelhada de sol, precocemente envelhecidos.
Sinto-me com se fosse um espião infiltrado no meio dessa gente. Sou um fingidor. Eles não sabem que eu trouxe os meus olhos ocultos, essas lentes de bardo. Busco palavras, respostas, que me preencham esse vazio enorme que trago bem aqui, no meio de mim. Estou oco feito o buraco que a draga deixou na maré. Estou sem mim. Cuido pra que não me descubram, corpo estranho, invasor de seus domínios miseráveis. A Ilha. Esse labirinto da miséria. Becos, lama escura, uma pontezinha de madeira, cai-não-cai! Barracos desencontrados, disformes, arquitetura caótica, amontoam-se uns sobre os outros, como os destroços de uma guerra fratricida.
Meus anfitriões me apresentam ao dono da barraca. Seu hálito traz um cheiro acre de aguardente. Chamam-me Professor. Prazer, Jorge Dantas, professor desempregado, às suas ordens! Não ousaria dizer-lhes o que realmente sou. Pelo menos o que sou aqui, nesse momento, entre esses barracos-sem-Deus. Trago comigo uma palavra escondida que não lhes posso dizer agora. Creio que não me entenderiam…
►alea índex