quinta-feira, 5 de agosto de 2010

LXIV – INTRA-HISTÓRICOS (1)

ou primeira meditação sobre a renitência dos despossuídos




PEDRO ANTONIO é um desses intra-históricos. Vive mergulhado em seu cotidiano. Passa todos os dias, cedo de manhã, em minha rua, rotina invariável, ao sol ou à chuva, arrastando a sua carroça-de-mão. De manhã, passa vazia, leve, rápida. À tardinha, lá vem ele, vagaroso, os fardos de papelão mal-arrumados, ferro-velho, latinhas espragatadas. Passadas lentas e olhos baixos, como a procurar algo no chão. Todo dia passa aqui no meu portão. Todo dia nos saudamos com as mesmas palavras, quase mecanicamente. Ouço o ranger das rodas nos eixos da carroça. Observo as rugas que já tomam seu rosto envelhecido.

Anoto, todo dia, essas coisas em um caderno. Há muitos anos venho fazendo isso. Estamos enredados na mesma teia. Na mesma tessitura. Ele, recolhendo os seus papéis do lixo. Eu, rabiscando essas notas que um dia vão ser lixo também. Somos parte de um círculo, de um circo, de um misterioso jogo de espelhos circulares. Um recolhe lixo, outro, apontamentos. Fluxo e refluxo da mesma maré de eventos.




►alea índex


IX◄


▲ Epilogo?