quarta-feira, 4 de agosto de 2010

XLV - MOÇA






...O Capibaribe passa lentamente arrastando consigo o Beberibe vagaroso. Os carros passam lentamente. O tempo escoa, o tempo escapa, o tempo escorre lentamente, segunda-feira abaixo. Escorre o sangue de uma ampulheta, vagarosamente, e vai tingindo a calçada em frente ao Banco. Rente ao meio-fio desliza um veio, rubro veio, lama sanguínea, escorre pela sarjeta. Sinto na boca um estranho gosto de sal. Ouço, (ou evoco), uma lenta sinfonia ao longe: “A Vida do Herói, Poema Sinfônico, Opus 40, de R. Strauss”. Andamento grave, solene. Às vezes a música vai sumindo, vai sumindo, sumindo, sumindo, até que... ...reaparece em uma finíssima flauta. Finíssimo flautim em meus silêncios. Morrer deve ser assim: uma pausa no andamento imprevisto dessa sinfonia. Haverá um Maestro a reger tudo isso com sua inexorável batuta? Em certa fase de minha vida preocupei-me em demasia com isso. Aos poucos aprendi a conviver com o transitório ser sinfônico em que habito. Mansamente começa a cair uma chuva fina sobre a Mauritzstad. As pessoas buscam as marquises do Banco e... ...a música cessa.


...Chove em algum lugar dentro de mim. E os pingos da chuva em minhas vidraças soam música. Dança na chuva um casal. Nas ruas da cidade dentro de mim, dança um casal. Mas, de repente, como em uma antiga película já desgastada pelo tempo, a música some. Dança o casal, mesmo sem música, ainda dançam, mas agora lentamente, slow motion, quase parando...Ouço então uma voz longínqua como um silvo, acutíssima. Uma voz? Um apito estridente? Uma sirena!

Ah, é uma sirena! Veio crescendo-me dentro, contínua e aflita, uma sirene agudíssima. Uma ambulância. Os esgotos sangram e avermelham a água dos rios que passam no Cais do Apolo. Há abelhas nas flores vermelhas do velho flamboyant. Explode branca, a ambulância. Os policiais espantam as abelhas e os curiosos. Deixam ficar apenas, vitoriosa e branca, a ambulância. Que é que essa gente tanto procura sob os jornais ensangüentados? Vejo, entre esses olhos curiosos, dezenas de olhos curiosos e estranhos, os olhos marejados de minha mãe. Que faz aqui dona Joaninha com esse olhar vazado?...Uma mosca irritante pousa em meus lábios. Tento afastá-la inutilmente. Começo a tomar consciência de meu estado. Essa mosca, tão frágil e diminuta, é, nesse instante, mais poderosa do que eu. Eu, --um legítimo representante de Homo Sapiens--, impotente diante de tão irritante criatura. Dominador dominado. Escravo. Entendo agora com clareza o que dizia Voltaire: “Em que consiste, pois, a vossa liberdade, senão no poder que a vossa individualidade exerceu ao fazer o que a vossa vontade exigia, com absoluta necessidade?” Mais livre do que eu, esse inseto. Irritantemente livre ao esvoaçar sobre meu rosto. Mas, o que digo? Será livre o irracional? Não sei suficiente metafísica para responder-me essa questão cartesiana. Mas, que importa agora a metafísica? Arre! Irritação fascistóide: vontade inútil de poder parar as asas rápidas dessa moça. Dessa moça? Ato falho. A impossibilidade é uma prisão terrível, moça. E acabo de tomar consciência de minha impotência diante de uma pequenina mosca. Vitoriosa, pousa sobre o meu nariz a mosca. Nada posso fazer nesse momento. A moça branca em trajes brancos troca por alvos lençóis esses jornais. Percebo, com alívio, o pequenino ponto esvoaçante afastar-se ante essa branca e providencial presença. Seus olhos me fitam com angelical ternura...




►alea índex

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