...ACOCORADA junto à margem do rio Pina, a saia rota presa entre as coxas, Maria do Ôio Azul enfia as mãos na lama escura. Pequeninos crustáceos amarelos fogem rapidamente de suas locas. Algumas garças pescadoras pousam sobre os arbustos do mangue. Dia ensolarado. Não se vê uma nuvem, sequer. Dona Maria, encandeada, fecha os olhos e enxuga a testa com o dorso da mão. Pensa nos netinhos que ainda não voltaram da rua.
“Devem de estar perambulando pela cidade, em vez de vir trabalhar pra me ajudar com o de comer.”
Arruma o pano que traz amarrado na cabeça. Alguns fios de cabelo, precocemente esbranquiçados, descem pela sua testa suada. Não é uma mulher de idade avançada, anda aí pelos quarenta anos, mas já alquebrada pela vida dura de catadora de caranguejo e pelas doenças da maré. O trabalho dos netos era incerto. Pouco ajudava. Era um frete, aqui, a guarda de um carro, ali. Biscates. Na maior parte do dia, esmolavam ou lavavam pára-brisas nos sinais da Avenida Boa Viagem. Do marido não esperava muito. O álcool lhe havia tirado a firmeza das mãos e nem pra consertar redes de pesca ele servia mais. Andava a catar papelões pelas ruas, puxando uma velha carroça, improvisada sobre uma caixa de geladeira. Bem, já era uma ajuda! Na maré, só ela mesma agüentava o tranco. Depois que os filhos morreram ainda lhe ficaram os netos por criar. Essa não era a vida que queria.
Beirava os quarenta anos, ainda era forte e bonita. Negra, quase cafuza, Maria era desejada pelos pescadores da Colônia Z-1. Dizem que, no tempo em que o marido vivia bêbado, deitava-se furtivamente com um amante. Gemidos lúbricos, nos barcos atracados no estaleiro da Ilha do Felipe. Mas essas são daquelas coisas que se dizem, mas não se provam. Senhora de seus dotes físicos, Maria lamentava o infeliz acidente que lhe roubara um pouco a formosura do rosto, motivo do inconveniente apelido que tanto a envergonhava. Até hoje não entende como aquilo foi acontecer: abanava o fogareiro em que fritava uns peixinhos, quando aquela faísca de óleo fervente saltou sobre seu rosto. Nem teve tempo de aprumar o corpo e esquivar-se.
“Foi um grito só! Uma dor tão grande que parecia que estavam enfiando uma faca de ponta no meu olho. Saí correndo pelos becos da ilha, feito uma louca. Todos os barcos grandes estavam no mar. Procurei Pedro Antonio pra me levar na baiteira até o Pronto Socorro de Afogados. Encontrei o cachorro caído na lama, cheio de cachaça... Num deu tempo. Por causa disso perdi o olho e ganhei esse apelido horroroso. Já viram uma negra com olho azul? Pois o meu ficou assim, azulado. Num presta mais pra nada!”
***
Não prestava mais pra nada, o marido. Era um bom homem. Mas a fraqueza nas mãos, a cachaça, num sabe? Não podia mais consertar redes de pesca, nem estar ali com ela, enfiar as mãos na lama, levando mordidas de caranguejo nos dedos. Seu Levi, dono de barcos, estava cansado de chamá-lo para o trabalho:
"Se não pode ir pro mar alto, conserta redes, homem! Todo dia chega barco com rede rasgada", gritava ele na porta do barraco, enquanto piscava o olho, querendo alguma sem-vergonhice com dona Maria. Dizem que o velho é portuga, e que esse povo é tarado por mulher negra.
A netinha mais nova aproximou-se com o balaio de caranguejos. Assustada com o reboliço dos bichos no caçuá, a pequenina veio choramingar perto da avó.
"Arreda daqui! Parece com o pai, que num prestava pra nada. Morreu doido de maconha, aquele vadio!" Esbravejou, irada, lembrando de um dos filhos.
Maria já não agüentava aquela vida miserável. Queria mesmo era sair daquela ilha nojenta. A mãe tinha enviuvado e, fugindo da seca no sertão do Pajeú, Belmonte, aquela terra de fanáticos e de miséria,veio embora para o Recife, arrastando a ela e aos cinco irmãos mais novos. Buscava melhores dias. Morreu pedinte, sua genitora. Sem eira nem beira. Mas nunca desistiu de lutar. Maria, como a mãe, sonhava em melhorar na vida. Quem sabe ir morar em São Paulo, cidade grande e progressista. Nem precisava ser tão longe. Podia ser ali, no outro lado, no Pina. No Bode, mesmo. Na Rua Encanta Moça, já servia. Perto de ônibus, lotação, feira... salão de beleza. Ah, como gostaria de entrar em um daqueles que tem porta de vidro. Fazer as unhas, raspar o solado dos pés, lavar o cabelo. Sonhava com isso. Seu Levi prometeu... no fim do ano lhe daria um vestido novo! Mas, de que adiantava vestido com aquelas mãos encardidas de lama? Pensava nessas coisas enquanto buscava a menina com o canto do olho perfeito. A netinha tinha de ter outra vida. Nem que para isso fosse fazer zona. É isso mesmo. Até a zona era melhor do que a vida da maré. Vejam as filhas de dona Santinha como se deram bem. Uma delas, Neném, morena forte, bunda grande, uns peitões, num instante arranjou um velho gringo. O homem endoidou por ela. Dizem que ela sabia fazer tudo com ele na cama. “E gringo não pode ver uma menina assim, safada, que quer logo casar.”
Magricela tinha de aprender tudo isso. “Melhor dar o rabo do que viver enterrada na lama,” resmungava.
Ergueu-se, as pernas doídas. “Isso é lá vida?” Não iria permitir que a menina crescesse na Ilha. O avô nem ligava. Se a neta desse pra puta ou não, ele nem estava aí! Se duvidasse ele seria o primeiro a tentar boliná-la! Cruz credo! Uma menina de sete anos? Pois, se não fosse a sua vigilância, ele já teria feito como Seu Zé de Lau, que forçou as duas filhas e as botou no mundo. Pelo avô, a menina já nem seria mais virgem. “Aquele canalha.”
Mas, deixa estar, jacaré, breve essa lagoa há de secar! Maria levanta os olhos, busca alguma coisa naquele mundão de lama. O Sol está a pino sobre a Ilha-sem-Deus. Nem sombra dos meninos! Hão de ficar pela rua hoje. Arrasta a menina pelo bracinho franzino e, com o caçuá na cabeça, a água suja dos caranguejos escorrendo pelo rosto, dirige-se para o barraco.
"Espero não achar o velho estendido no chão, de porre. Hoje eu faço uma besteira. Jogo um balde d’água em cima dele. Eu que me importa se ele for embora. Num serve mais pra nada... Só vive de catar papéis no lixo. Já estou cansada dele e da vida nessa ilha ‘miseráve’..."