domingo, 1 de agosto de 2010

XXIX - MITOPOÉTICA




"Se quiserem escrever sobre essa urbe fluvial, enveredem pelas suas matrizes míticas, pelo que nela há de aórgico e de ancestral. Busquem uma Mitopoese antes de uma História. Lá nascerá o homem, o herói angustiado e só, entre temores e tremores. Subam aos arrecifes nas noites das grandes ressacas de agosto. Deixem-se arrastar pela força das enxurradas, nas enchentes das várzeas do Beberibe e do Capiberibe. E durmam ao relento numa baiteira em noite de tempestades sobre o manguezal. Corram nus, pelas margens enlameadas, sob o ribombar dos trovões, como caranguejos de andada. Sintam medo, sintam pavor, mijem-se e caguem-se ao fulgir dos raios e relâmpagos que derribam os altos coqueiros nas praias deserta da Ilha das Cabras. Ali também estarão os elohins, os odins, os vulcanos, os oguns, tupãs e todos os elementais, pois os deuses são também brasileiros e habitam, ab origine, o delta de nossos rios. Ave! Shalom! Saravá! Alah-Hu-Acbar! Viva Deus, que pequeno sou eu!”   (Jöhan Linz)




Depois daquele dia, no Clube Franz Post, em que ouvi o memorável discurso do Mestre Johan Linz sobre a Protopoesia, criei coragem e resolvi escrever essa coisa caótica e fragmentária, assim mesmo, de meu jeito.
Euclydes da Cunha, primeiro, Ariano Suassuna depois, enveredaram pelos Sertões, cada qual a seu modo, porém movidos, os dois,  dizia o Mestre Linz, pela mesma “grandeza majestática da árida paisagem sertaneja”.
Decidi também enveredar, a meu modo, com “as lentes transfiguradoras da (minha) emoção”, pelo não menos inóspito e dramático universo do meu Mangue interior. Interior porque não se trata apenas do mangue que vejo, que via: as rizophoras esverdeando o estreito horizonte; os palafitas fincados nas margens do rio.
Mangue interior porque é mais que isso que os olhos percebem.

Não se trata apenas de buscar uma enarrativa na geografia do manguezal, no relógio lunar das enchentes e vazantes da maré, no ar carregado de maresia... Trata-se de desencravar a história anteriormente prefigurada nessa geografia. Ou melhor, mergulhar na intra-história que jaz na alma dessa gente ribeirinha, que é o verdadeiro lócus geográfico de onde brota, funda e inconsciente, a lenda coletiva, a mitopoese da maré:


“...Jaz a Noite Imensa sobre o mangue...
A cidade surge antes,
das enchentes, das vazantes,
fundação amorfa, sem face, vazia...”


E como se vão sondar essas raízes intra-históricas sem lhes descobrir as matrizes míticas?
Haverá mito na maré?
Ouvir-se-á aqui o arfar da Onça-parda suassuna?
Algum monstro anfíbio resfolega à flor das águas?
Um elohim?
Um orixá?
Um rei defunto que regressa?

Só lama e gente: a raça piolhosa dos homens, diria Quaderna.


***


O manguezal, Mestre. Essa é a minha única saída para o universo, minha efabulação, minha mitopoética...
Mas, insisto, que mitopoética se ergueria dessa paisagem enlameada da maré?
Jamais a mitológica estirpe sertaneja de Bel-monte. Enlouquecida, mas, régia e solene. Onde encontrar aqui as armas e os brasões armoriais, os ferros heráldicos com que lá se marcam os bois, as herdades, os retábulos, as crenças, a fé?
Entre os mocambos, apenas seres enlameados, furtivos homens-caranguejos, escondem-se, encovam-se, assustados crustáceos. Nada neles é majestoso e forte. Neles não há uma epopéia.


No entanto, quem sabe, os tetranetos de Canudos, arribados daquele sertão euclydeano, tenham vindo aportar às margens do Rio Pina, do Rio Tejipió. Com eles devem ter vindo as imprecações, as chagas, as rezas e os gemidos da caatinga; com eles, toda uma mitologia soterrada em suas almas, em seus corpos; com eles, a subterrânea e funda mitopoética dos aboios, dos repentes que ouviram por lá.
Toda essa intra-história campesina, egressa do sertão, irá aflorar, como ilhotas à flor d’água, em anônimas biografias (manguesinas?).
***
As luzes são dos coriscos do sertão, mas o que ecoa é o ribombar trevoso dos trovões, na escuridão da Ilha-sem-Deus.

Evoé! Tupã vive!


►alea índex


XXVIII◄