domingo, 1 de agosto de 2010

XXVIII - ATELIÊ






...Anteontem, depois de ter lido e relido, várias e demoradas vezes, a carta do afamado beletrista, Dr. Abdenego M. de Souza, resolvi ir até o ateliê do Mestre Jöhan Linz. Estava deveras perturbado. Não imaginava – santa ingenuidade! – que a minha obra seria tão destratada. Pus-me a caminho do ateliê, ruminando essas coisas. Era de tarde e o sol ainda estava alto. Procurava, como de costume, a proteção das ruas ensombreadas da Boa-vista. O Mestre já havia mudado do velho endereço da rua dos Prazeres, 50. Alugara um sobrado antigo e espaçoso na Leão Coroado. Ficava no 1º andar e tínhamos de subir uma escadaria de madeira. Não havia ainda a campainha e nós gritávamos bem alto da calçada em frente. Eu e o Mestre andávamos tão sintonizados que muitas vezes ele punha a cabeça na janela antes mesmo que eu o chamasse. Dizia que percebia meus fluidos ao longe. Nunca liguei muito pra isso. Mas hoje estou mais próximo de crer. Minha mente está em um estado próximo dos êxtases místicos. O estado de numinoso jungueano.

Era talvez por esse tipo de ligação que eu estava indo procurar o Mestre naquela tarde. Precisava de alguém que me ajudasse a fazer uma sincera autocrítica. Causou-me um choque a carta do eminente doutor. Tantos meses de trabalho. Dura rotina diante de uma máquina de escrever. Dores nas costas e outras algias incômodas. Meses de pesquisa. E como é difícil a pesquisa de um autodidata! É um tal de procurar aqui e ali. Escreve pra um. Aborda outro nos congressos, nos vernissage, palestras. Uma luta! Pra depois...isso. Uma crítica demolidora! Aviltante! Conversar com o Mestre me faria bem. Ele sabia como ninguém levantar o nosso astral. Era uma grande alma! Um mahatma! Seu pensamento esferista me abria a mente. A ele, de certo modo, devia a sustentação teórica de meu trabalho. Embora não fosse escritor, suas meticulosas argumentações sobre a arte me moviam a pena. Era plural, o velho bruxo da Boa-vista. Era, como ele mesmo gostava de dizer, esférico...

-- Porque tu falas tanto na morte em teus textos, Jorge? A morte é apenas uma passagem para outra instância. Como uma mudança de estado na matéria. Somos imperecíveis, meu amigo. O ser é indestrutível. Nada verdadeiramente se destrói. Tudo está mergulhado no transformismo fenomênico. Falas de uma entidade que não tem existência em si mesma.

-- Mas eu não falo da morte em meus textos, Mestre. Pelo menos diretamente. Tudo o que faço, penso ou escrevo, busca algo que está na morte e que, no entanto, não é a morte. Minha linguagem é a economia-do-medo-de-findar-no-sem-sentido. Em todos nós habita, de algum modo, esse projeto, secreto e inútil.


►alea índex

►I (Jorge)